Simplicíssimo

A literatura que é farsa (2ª parte)

Ossos de um milhão

 

Apertem o cinto, porque vamos voar. Vejam: “Um dilacerante livro de estréia … Ele escreveu o Guerra e Paz da dependência química… É implacável ao mergulhar num mundo em que as personagens…. Este é o livro mais abrangente sobre dependência produzido por essa geração – que domínio da escrita, que honestidade poética …”. Calma, temos piedade, não continuaremos a citar, porque nesse ritmo ultrapassaremos as nuvens muito além de Cervantes e Shakespeare.  Escrevemos voar, e não foi por acaso. Porque, se nos permitem uma honesta citação de vigor poético, do mundo da publicidade, citaremos:  

 
“Imagine acordar num avião. Você não tem idéia de onde esteve e nem de para onde vai. Não lembra de nada do que aconteceu nas duas últimas semanas e descobre que perdeu os dentes da frente, seu nariz está quebrado e tem um corte profundo no rosto. Está sem carteira, sem dinheiro e sem emprego. A polícia de três estados procura por você. Imagine ainda que você é alcoólatra há dez anos e viciado em crack há três.
 

Para o autor americano este não era um enredo de ficção, mas a sua vida real. Ao reconstituir sua história de abuso de drogas, dependência e reabilitação – com uma narrativa pungente e vertiginosa – ele foi saudado por crítica e leitores de vários países como uma voz autêntica e de raro talento da literatura contemporânea.

 

Escrito num ritmo ágil e minimalista – com direitos já vendidos para a Inglaterra, Alemanha, Holanda, França, Itália, Espanha, Suécia, Israel, Hungria – o livro traz uma abordagem direta que rejeita autopiedade, cinismo e indulgência”.

 

Viram, voaram e sonharam. Um texto assim, escrito na página de vendas do livro, nós, os espertos, os sábios, não acreditamos. Temos que sofrer a sedução de outras páginas, da chamada crítica especializada (em quê, sobre o quê, não perguntem), em suma, temos que ir nas seções de livros da grande imprensa. Aí, sim, recebemos o cerco e a vitória sobre a nossa ponderada e sensata desconfiança. E por isso vemos, e nos encantamos, com a sagração do autor em uma página da revista Época, número 283, de 20.10.2003:  

 
“Aos 33 anos, James Frey é a nova promessa da literatura de língua inglesa …
 

‘Não tenho vergonha de dizer que quero ser o melhor da minha geração.’ A declaração é de James Frey, de 33 anos, americano considerado a mais nova promessa da literatura de língua inglesa. Frey chega para fazer companhia a Dave Eggers (deUma Comovente Obra de Espantoso Talento) e Zadie Smith (de Dentes Brancos ), jovens e talentosos como ele. A diferença é que Frey é menos modesto. Não se acanha ao afirmar que ninguém escreve como ele, e diz que dá continuidade à tradição de Ernest Hemingway.

James Frey é um sujeito metidinho, mas escreve bem à beça. Um Milhão de Pedacinhos, a obra de estréia que acaba de chegar ao Brasil, é um relato autobiográfico de seu passado como dependente de drogas e álcool. Os dez anos de overdoses, desmaios e ânsias de vômito diárias (descritas sem a menor delicadeza) são relembrados em flashbacks, enquanto ele passa três meses numa clínica de desintoxicação. Frey saiu de lá recuperado. Seu estilo, ríspido e direto, é ímpar”.

Ao lado, uma foto desse imenso talento, com a legenda, a indispensável legenda, a que atesta, e não se diz, porque esta é a marca do marketing de gênio: “PRECOCE – O escritor começou a se drogar aos 12 anos”.   Um pequeno trecho da escrita do autor, sim, um pequenino trecho, para não nos matar num acesso de deslumbramento ante a genialidade:

“Estou em outro Quarto branco, e o odeio. (…) Há outra cama, outra mesa, outra cadeira, e tenho vontade de destruí-las. Há uma janela. Quero me jogar por ela. Sigo minha rotina. Rastejo até o Banheiro. Vomito. Deito no chão. Vomito. Deito no chão. Vomito. Deito no chão”. E uma declaração do gênio, que se publica sem qualquer comentário (quem contestaria, na Idade Média, Aristóteles?), de que “Escrevo como penso. E quando penso não há parágrafos ou aspas, não há pontuação”.  É um bárbaro, enfim, e ninguém diz. O bárbaro por método. A regressão à estupidez por lema e objetivo. Ora, elementar dos elementares, um grito pode ser uma expressão de dor para o infeliz dono do sofrimento. Mas a expressão artística desse grito é que vai fazer compreender e sentir ao público, até então alheio ao sofrimento, quão grande é essa dor. E para isso, o pensamento, esse corcel bravo, indomável, precisa ser agarrado na veia pulsante. Precisa sofrer uma tentativa de domínio. Daí vêm as filtradas palavras, as aspas, a pontuação, os parágrafos, a raiva, a caganeira, a felicidade. Esse processo elementar, sem o qual pensamento escrito jamais será pensamento realizado, o gênio citado despreza, e isso passa sem discussão, sem o mais breve comentário, porque a bula e a burla da mercadoria informavam, “o escritor começou a se drogar aos 12 anos”.

Pero eis que chega 2006, e essa marca do gênio, que vem a ser a autobiografia do escândalo, começa a cair. Em Um Milhão de Pedacinhos. O livro com esse título havia se tornado um sucesso porque um programa de televisão havia feito dele um guia para a regeneração de viciados, de costa a costa, de veia a veia dos Estados Unidos. “Eis o depoimento de quem desceu aos infernos, e o caminho da cura” (para não virar Rimbaud, acrescentamos), dizia-se. O livro se vendeu, o livro ganhou méritos de estilista, o autor, etc.etc.etc. e mais etc. que Homero, e, sabe-se, atingiu a Espanha, Inglaterra, Europa, Rio de Janeiro e Pernambuco. Até o fim de 2005. Na última notícia que temos de tamanha celebridade, ele, o  autor, o arrogante autor, admitiu humilde e cordeirinho a uma  apresentadora de TV, Oprah Winfley, que inventou detalhes sobre todos os personagens de Um Milhão de Pedacinhos, o seu livro de memórias. Segundo informa o Globo Online de 27.1.2006, http://oglobo.globo.com/online/cultura/mat/2006/01/27/190090232.asp :

“- Eu fiquei realmente constrangida com isso – disse Oprah Winfrey, cujos elogios ao livro de James Frey feitos em setembro ajudaram a torná-lo um best-seller nos Estados Unidos, no ano passado. – Realmente me sinto enganada". E  esta resposta que recebeu do autor, costa-a-costa dos Estados Unidos:

“- Eu menti – disse James Frey. – Não é algo fácil de fazer em frente a uma platéia cheia de gente e em frente a muitas outras pessoas que estão vendo o programa na TV… Se sair desta experiência aprendendo algo, como ser uma pessoa melhor e aprender com meus erros, garanto que não vou repeti-los…

James Frey também disse que passou duas horas preso, e não 87 dias de prisão, como havia escrito”

Urariano Mota

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