Simplicíssimo

Aurora (XXX)

XXX

 

 

– Aprendeste que com as flores move-se a água.

 

 

Padre Barton, embora afastado de sua ordem há tempos, mantinha-se informado sobre os desenrolares da santa madre instituição em Avignon. Possuía contatos, amigos frades, religiosos antigos de mosteiros freqüentados anos antes que, quando não já hóspedes papais, estavam direta ou indiretamente ligados aos processos inquisitoriais e eclesiásticos da época. Desta forma, o Concílio do Santo Suplício, a ser realizado segundo tais fontes dentro de sessenta e seis dias já era do conhecimento de Barton; que reconheceu aí a perfeita lacuna para me infiltrar na sede católica.
“- É uma destas reuniões enfadonhas que servem para muitos falares, poucas resoluções práticas e muita comilança. Muitas ordens religiosas de todas as partes do mundo se encontrarão, dominicanos, o bispo de Caffa, eclesiásticos mediterrâneos, frades de outros países e terras desconhecidas discutirão os decretos eclesiais e os meios de coerção a estas novas congregações que afloram Europa afora. Será um evento majestoso e dificilmente se terá o controle de todos os nomes dos convidados, uma vez que a maioria é estrangeira e muito dos sicários encarregados deste controle são ignorantes; e que me desculpem os ignorantes!” – Barton aborrecia-se seguidamente e talvez se aborrecesse por qualquer assunto santo que envolvesse seus desafetos.

“- Mas como” – disse-lhe, “poderão discutir as novas ordens, se ali estarão presentes sacerdotes que, de suas abadias, nada sabem a respeito das novas religiões que somente são comuns entre os vulgares dos povos europeus?”


 “- Sim.” – admitiu Barton com uma leve hesitação na voz, e num fôlego disse: “- Mas o que se esconde atrás da coerção intencionada por Clemente é o próprio poder destes mesmos sacerdotes. Não penses que a rotina destes homens é apenas a celebração de missas, o ouvir de confissões e o engolir de hóstias. São espirituais, mas também são homens, e como homens defendem suas posições e interesses. Do alto de seus muros, por mais distantes que sejam suas abadias, passam dias a ouvir também o que lhe dizem os sicários a respeito do que acontece nas aldeias, nos povoados de suas jurisdições, ou seja, detém o conhecimento de qualquer minoria, uma vez que alguns sicários se vestem como pessoas comuns e se infiltram em qualquer taberna à procura de discussões a estes respeitos. Depois, passam a frente as informações e são bem recompensados com pequenos cálices de ouro, jóias e tudo mais. Embora seja uma maneira eficaz de controle sobre o que tramam os novos gnósticos e agnósticos, de qualquer forma estes sacerdotes espiões mancham-se de heresias.”

“- Mas estas novas ordens que surgem em pequenos povoados e tabernas podem afrontar o poder sacerdotal?”

“- Veja os franciscanos. Hoje são a maior afronta a Clemente dentro da própria igreja e quando surgiram pediam às pessoas nas ruas para comparecerem as suas reuniões; e estas pessoas os aceitavam, aumentando a eloqüência e a disseminação da ordem. Muitos que compareciam viam pinturas e esculturas onde os apóstolos eram retratados com humildes sandálias nos pés e mantos puídos envoltos nas costas; se identificavam com aquela imagem de pobreza e sentiam a necessidade da fundação e apoio de uma ordem de pregadores que fossem como eles e pobres como o próprio Cristo, isto é, tudo aquilo que combatem os ostentadores e bufões de Avignon.”
“- Mas então os franciscanos estão certos?”

“- Mas erraram também em algumas coisas… vestidos como mambembes e com os cabelos e barbas compridas e desleixadas chamaram a atenção dos imperiais antes mesmo de congregarem um número significativo de fiéis. A igreja começou, então, a ver Francisco de Assis como um louco mal vestido que pregava aos gaviões e escrevia parábolas na areia; que apenas detinha a atenção de outros excluídos como ele, como os leprosos.”


 “- Mas Francisco nunca se pôs em conflito com a igreja” – disse minha curandeira, tomando parte com seu fino fio de voz, “seguia apenas o evangelho. Era difícil contradizê-lo porque era um homem apegado às escrituras e as conhecia como ninguém.”

“- Talvez… mas poderia ter sido mais clarividente quanto às pressões que sofreria, poderia ter sido mais cauteloso.”- respondeu Barton, “- Surgiram rixas desnecessárias e que lhe fizeram muito mal. Sua reputação foi afetada com boatos que o chamavam de filho de uma prostituta de Constantinopla, de louco e mendigo, embora ele nunca tenha pedido aos outros que fossem pobres ou que deixassem suas ordens para segui-lo. Acabaram, afinal, apontando-o como bandido. Muito tempo se passou para que sua ordem fosse acolhida pela igreja e esta somente o fez porque, no fim das contas e por bem ou por mal, muitas multidões se aliaram aos preceitos de Assis e o marcaram como o verdadeiro renovador da igreja.”

“- Já que Assis conhecia tão bem as escrituras e era dificílimo contradizê-lo, a igreja arranjou quais meios para persegui-lo antes que fosse reconhecida a sua ordem franciscana?” – perguntei aos dois.
“- É neste momento que entram em cena os teólogos imperiais, caríssimo. De suas constatações, de tão complexas, pouco se entendia, mas afirmavam que a igreja detinha bens não em direito, mas apenas em uso, o que fazia da santa madre instituição tão pobre quanto o Cristo dos franciscanos. Francisco de Assis então disse que a igreja possuía bens não por caridade, como prega a santa escritura, mas por obrigações que impunha aos fiéis, tornando-os escravos da fé. Tomaram-lhe, então, como um blasfemador, e encontraram, enfim, algo do que poderiam acusá-lo. Por fim, após muitos anos os franciscanos conquistaram seu espaço devido a proliferação de seus fiéis, caso contrário, Francisco não contaria, como conta hoje, com um lugar no grêmio dos santos dos católicos… De qualquer forma…” – neste momento, a paixão da voz de Barton deu lugar a um tom de seriedade, e passou a mão pela testa como que para apagar um sonho que não lhe era mais bem-vindo “falo-vos dos franciscanos porque será dentre os monges desta ordem que te inserirás em Avignon. Pregam a pobreza e se vestem de maneira muito simples, sem qualquer ostentação, jóias ou estas gemas de ouro que são tão comuns nos monastérios e outras ordens. Com esta vestimenta que te deixou teu pai, apenas poderás ser um franciscano. Caso contrário, encontra ouro e prata para bem te vestir. Ou é isso ou nada.”

Em nossas aulas, então, Barton me preparava para ser um franciscano. Ensinou-me as passagens da Santa Escritura às quais estes monges mais se apegam, a como citá-las com fervor nas conversações, sem hesitação alguma e a como argumentar com o racionalismo de Roger Bacon, padre Franciscano que pertenceu à Escola de Oxford.


 “- Bacon” – Barton ensinava-me entre gestos e variações contínuas em seu tom de voz, “- estudou em Paris entre 1231 e 1236. Foi discípulo de Robert Grossetête que exercia na época a função de chanceler na Escola de Oxford. Ficou conhecido como Doctor Mirabilis, e deste seu pensamento afloravam muitos dos ensinamentos de Vicenzo Locci. Pode ser considerado um dos precursores do espírito científico do pensamento moderno por defender a importância da matemática para a fundamentação da ciência natural e por valorizar o papel da experiência para a ciência. Foi perseguido em várias ocasiões devido às idéias pouco enquadradas no mundo escolástico e, além de procurar aplicar o método matemático à ciência da natureza, fez diversas tentativas para torná-la experimental, sobretudo no campo da óptica. Apesar de argumentar que "ver com seus próprios olhos" não é incompatível com a fé, não conseguiu demover estes medievais da desconfiança gerada por qualquer tipo de experimentação. Sob a suspeita de ter colocado em questão as obras aristotélicas de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino, acabou aprisionado e morto. Veja este livros…” – e agora Barton pegava alguns volumes de uma de suas bolsas de pano “- Suas principais obras são: Opus majus, Compendium Studii Philosophiae e Compendium Studii Theologiae.” – mostrando-me as obras de Bacon, e continuou, pausadamente: “- Olhe para este navio… os fundamentos de Roger Bacon estão por toda a parte! Se pensas que por efeito da magia a embarcação se moverá sem vento e sem o movimento das marés por estes túneis subterrâneos até chegar ao Golfo de Veneza, muito te enganas!”
“- Mas como um pó retirado de flores pode movimentar um navio?”
Padre Barton abriu um sorriso sincero:
“- Digo-te que não somente o pó das papoulas o fará, caríssimo, e a explicação é das mais interessantes.”

 

Rodrigo Monzani

Comente!

Deixe uma resposta

Últimos posts

Siga-nos!

Não tenha vergonha, entre em contato! Nós amamos conhecer pessoas interessantes e fazer novos amigos!

Últimos Posts