Simplicíssimo

Borat!

O Brasil vai mal. Saímos do filme Borat, hilariante, e percebemos que só nós, eu e Fran, estávamos achando o filme engraçado para valer. Fran foi ao toalete e lá escutou de uma mulher da classe média paulistana, que falava sem graves erros de português: “eu pensei que fosse uma comédia”. A outra respondeu: “ah, é válido, é um filme diferente, não é?” Contei isso a amigos de outras capitais e eles disseram que tiveram a mesma impressão. Há vinte anos ou trinta, esse tipo de filme era amado e entendido pela classe média. O que ocorreu no Brasil? Isso já é um índice educacional de nosso povo?
 
E a reação do público que sobrou? O público que conseguiu apreciar o filme, o que achou? Não sei ao certo, mas já tenho alguns elementos para comentar, não propriamente a reação do público, mas o sentido do filme enquanto filme do humor que ainda deve muito aos anos noventa, no estilo de “Seinfield”. E faço isso pela via da filosofia – a filosofia do humor. Há quem tenha considerado o filme como um “escracho” contra o “American Way of Life”. Não vejo assim. Vivi e trabalhei nos Estados Unidos. Estudei a cultura americana por ter me tornado, em parte, um scholar de filosofia americana. Creio que por isso minha reação ao filme foi diferente. O que exponho abaixo é uma visão do filme, é claro, apenas uma. Mas é aquela que a filosofia do humor que desenvolvo tem alguns indicadores já prontos para serem oferecidos ao público. É o que faço nesse pequeno texto abaixo.
 
O “American Way of Life” (AWL) não é lembrado no filme, e isso garantiu o sucesso dele nos Estados Unidos. Pode-se tocar de fato no “American Way of Life”? Não! Ele um tabu nos Estados Unidos, mesmo depois de todo o cinema crítico e mesmo depois de toda a boa leva de professores de esquerda dos departamentos de Letras das universidades americanas. Deitar uma crítica demolidora do AWL é impensável. É aquilo que ninguém ousa fazer, de verdade, se quer vender algo nos Estados Unidos – ao menos é o que se pensa; e o que se pensa, pesa. E nos Estados Unidos, tudo que se faz é para vender, pois não há como atingir nem mesmo o vizinho mais próximo com algo puramente gratuito. É claro que há muita coisa gratuita em termos culturais nos Estados Unidos. Mas o público sabe a razão pela qual aquilo é gratuito ou, ao menos, parece ser gratuito, e isso vai para o mercado. Então, para passar uma mensagem, é preciso colocá-la no mercado. Fora disso, não há o que fazer. E o mercado pode reagir mal se o produto desmentir o AWL frontalmente. Ninguém sabe se isso é verdade, é um presságio. Mas ninguém é louco o suficiente de pagar para ver. Ninguém tentou isso para ver o resultado? Talvez tenha tentado. Mas a história o enterrou. Mesmo os filmes altamente críticos em relação ao AWL – o sonho de vida da classe média americana nos anos cinqüenta – sempre são bastante cuidadosos no sentido de manter como válido o seu núcleo: a família de três filhos que pode viver mais ou menos unida, mesmo que os tempos mudem e algum filho tenha caído nas drogas ou na cadeia; os pais que constroem a nação mesmo que venham a se divorciar; e o ideal – correto – de não deixar a nação se dividir, uma vez que agora um novo tipo de movimento como aqueles que ocorreram no passado (o filme “Gangs de Nova York” descreve bem isso, e “Crash” o complementa a partir de outra época e outra visão) destruiria de vez os Estados Unidos. Destruiria? Não se sabe. Sabe-se apenas que há o temor disso no ar. O temor de uma nova forma de Guerra Civil, separatista, nunca foi superado. Kennedy favorecendo os negros, Johnson favorecendo as crianças pobres e Clinton favorecendo o multiculturalismo foram facetas desse medo. No limite, é necessário manter a chama acesa: “América, terra de liberdade e de oportunidades – para todos”. Sem isso, não há a “América”. Sem a “América”, não há a América.
 
Dito isso, tenho o pano de fundo para falar do humor de Borat – o genial Borat.
 
O filme, até o ponto que sabemos no momento – nós e a imprensa mundial – , é feito na base do “reality show”. Onde tudo é real e ao mesmo tempo pode ser um “fake” – é um “fake”! Em geral, é o “fake” do “fake”. É o tipo de filme inteligente em que o “não é o que parece” funciona em vários planos, indo e voltando na memória de quem sai do cinema e apreciou a história. E o que é mais inteligente na produção do filme é que ele foi feito tendo como garantia de seu sucesso, desde o início, a idéia de que se trata de uma crítica à vida americana, mas que, na verdade, em nada critica a vida americana que já não tenha sido altamente criticado pelos americanos. Tudo que ele apresenta como sendo a vida americana é aquilo que o americano médio escolarizado ridiculariza em sua própria cultura, como sendo o que um “loutish man” faz. Em nenhum momento Borat arranha o AWL porque este não tem nada a ver com o que ele apresenta no filme – e os americanos sabem disso. Todavia, ao retratar o “lautish” americano, Borat está criando, sim, uma profunda crítica ao europeu – e outros – no que eles imaginam que seja a América. É uma forma eficiente de fazer o público americano rir daquilo que ele já ri – e esta é uma boa fórmula do humor no mundo todo atualmente. Mas é, também, uma forma sutil de chamar os europeus e outros povos, que tentam se americanizar, de incapazes de assim fazer pois, de fato, não compreendem a América. O filme é isto: tudo que existe de estúpido nos Estados Unidos – e que é o ponto de ridicularização, por exemplo, por gente que tem uma cultura universitária na sociedade americana – é colocado como o que é absorvido facilmente pelo “europeu” Borat. E o “europeu” Borat representa um homem culto do seu país, é um homem da TV estatal de seu país (disse e repito: pode ser o Brasil, o país de Borat). Não é pouca coisa.
 
Uma só questão que eu lembre já mostrará o que quero dizer. Borat chega a New York e se apaixona por Pamela Lee. Ela foi a “prostituta do mundo”. O consumo dos seus vídeos foi grande nos Estados Unidos. Mas foi grande no mundo todo. Nos Estados Unidos, era o consumo normal de vídeos pornôs, nem mais nem menos do que é o comum em um país industrial daquele tamanho. No resto do mundo, era o consumo em busca da “mulher americana”. Essa é a diferença. No resto do mundo, Pamela Lee foi realmente tomada como mulher – como mulher americana! E Borat captou isso e levou tal sentimento ao exagero: o estúpido do filme não é o americano estúpido somente, mas sim o homem escolarizado da Europa (ou qualquer outro lugar), que age diante do lixo americano de um modo a tomá-lo como o que é a vida americana na sua totalidade – para amá-la (ou para fingir odiá-la). Esse é o verdadeiro estúpido que Borat ridiculariza ao ridicularizar-se. Borat, o repórter, é o verdadeiro estúpido do filme. Ele mostra-se estúpido diante de tudo que é estúpido e ridicularizado pelo americano não estúpido, e ele absorve aquilo ao seu modo, e transporta tudo para seu modo “europeu” (ou brasileiro) de ver as coisas. Com essa fórmula, que penetra o subconsciente até mesmo do estúpido que age como o repórter Borat, ele garantiu o êxito do filme.
 
O episódio do rodeio mostra bem isso. Ele entra em um rodeio e, para agradar, começa a falar frases a favor da guerra contra o Terror. Mas vai ampliando as frases de modo que elas começam a mostrar um sentimento cru, rude e cruel em relação ao “inimigo”. A idéia que se faz do Texas, na Europa (e principalmente em lugares rudes mesmo, como o Brasil), é de que o Texas é um lugar rude. Um lugar conservador ao extremo. Mas a idéia que o europeu (ou o brasileiro) tem do conservadorismo do texano é, não raro, imbecil. E ela aparece em Borat, no discurso dele. Ele começa falando de seu apoio à guerra e é aplaudido. Mas na medida em que ele vai colocando palavras selvagens na boca dos americanos, que é o que um europeu (ou brasileiro), muitas vezes culto, pensa a respeito dos americanos, ele vai caindo em desgraça diante do público, e vai deixando de ser aplaudido. Alguém pode pensar: ele está sendo sincero demais, e os americanos que estão assistindo são hipócritas. Fazem mas não possuem a coragem de falar que fazem: matam mas não podem dizer que matam. Essa forma de ler o episódio do filme só em parte é válida. Isso é apenas uma forma de leitura, também permitida, por Borat. Mas não é a questão de Borat e não é o ponto que ele quer atingir, pois, de fato, essa hipocrisia não é o traço marcante do americano, ao menos não maior do que seria entre nós, brasileiros – é a hipocrisia comum e normal a que existe lá. A questão de Borat é outra. E por ser outra é que o filme é notável. Pois se a questão fosse a hipocrisia, o filme seria a repetição de tantos outros que já puseram no cinema e na literatura mil vezes essa forma de denúncia – desde o Cartas persas, de Montesquieu, que se faz isso bem feito.
 
Na cena do rodeio Borat novamente se mostra ele próprio como o palhaço. Ele, aliás, ocupa o lugar literal do palhaço no rodeio – perceberam? Ele é de fato o palhaço – é o “europeu” (ou o brasileiro!) escolarizado. Ele não é o europeu estúpido que está se relacionando com o americano estúpido. Ele é alguém que pode, sim, ser tomado como o intelectual europeu médio, ou seja, o homem de televisão, que está se relacionando com o estúpido americano, um estúpido que às vezes existe e às vezes não existe. Existirá o “europeu” de Borat? Eis aí a interrogação que o próprio Borat deixa no filme, e isso faz da película algo ainda mais inteligente. Podemos transportar a questão: haverá o brasileiro culto que age e pensa como o repórter Borat? Não é engraçado? Sim! Nós conhecemos algum professor universitário brasileiro que imaginaria ser verdade aquilo que Borat mostra na hora que ele quis se identificar (com fracasso) com o público do rodeio e, então, elogiando a guerra, disse que queria, junto com os americanos, “beber o sangue do inimigo”? Podemos lembrar de professores à direita e à esquerda pensando assim, no Brasil? Não podemos? Se eles existem, eles são o repórter Borat, lá do país X. São esses os verdadeiros alvos da crítica hilariante do filme “Borat”.
 
As cenas de “Borat”, durante a filmagem, fizeram a polícia aparecer inúmeras vezes. Houve reclamações de todo tipo. Ele enganou muita gente, para filmar as pessoas. Mentiu e prometeu. E mais: sobre seu ataque em cima de Pamela Anderson, ninguém sabe se foi combinado ou não.
 
De fato, Borat quer atingir o público usando o que hoje está na forma mais corriqueira de fazer TV. Por exemplo, você assiste algo como o Big Brother (não o brasileiro, que é muito mal feito e chega a ser coisa para débil mental) e não sabe até que ponto há “combinação por detrás das câmeras ou não”. Esse tipo de dúvida é o que Borat explora. Quem é o idiota de Borat? Sim, os estudantes que ele encontra são perfeitos idiotas, mas ele, aprendendo lições deles, é o maior idiota. A diferença é que aqueles estudantes são os idiotas da universidade dos filmes americanos quando tais filmes querem tratar de idiotas. Todavia, aqueles ali eram reais? Mas e Borat? Borat é a ficção do jornalista europeu (ou brasileiro). Mas ele é o mais real ali, mesmo sendo ficção: pois ele é o jornalista europeu ou brasileiro ou de qualquer outro lugar que, ao captar a idiotice, acha que captou realmente “o que é a América”. E o que faz daí em diante? Ora, leva o seu filme para sua terra e, então, ela se “americaniza”. A tentativa de implementação disso, que ele capta na América, na Europa ou em qualquer outro lugar é que é o verdadeiro pastiche (algo como a “americanização” de Barretos, entenderam?). No final do filme, na cena de canto do hino da terra de Borat e do suposto término do documentário, ele mistura cenas típicas da Rússia estalinista com práticas idiotas ou obcenas americanas, explicitando então, de uma vez por todas, o alvo do filme.
 
O filme é sensacional e há mil coisas ainda para se falar dele, do mesmo modo que há ainda curiosidades que vão ser descobertas.

Paulo Ghiraldelli Jr.

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