Simplicíssimo

Pústula-Mágoa.

Eram duas e meia da tarde. Ela pintava as unhas em frente à TV. Contentava-se a solidão. Incômodo. Não era bem isso, mas uma tristeza incômoda o que sentia. A mãe bem que conseguia estragar-lhe tudo. Desde as unhas, com os serviços domésticos que ela tanto odiava e que era obrigada a fazer, mais por uma questão de boa convivência política do que por uma questão de hábito ou necessidade. Não se incomodava com as louças sujas, a cama por fazer.

Era sábado, e Marie, acostumada com sua solidão na casa da mãe, fazia as unhas. Sua atividade favorita. Fazia-a não pensar. Exauria-lhe todo o sentido e deixava-lhe o silêncio sem peso. A de Marie mãe fazia-a pagar, a cada dia por seus maus passos dados quando mais jovem. Moravam numa casa confortável perto do centro da cidade. O dia era de festa, e era curioso como as pessoas, de modo geral, desgastam-se tanto para uma festividade. Em geral, não se pensa no depois. O depois não existe quando se tem uma festa. Pensa-se até o momento da celebração e não se cogita sobre o vazio que se forma depois. Tudo volta ao normal, ao seu ritmo medíocre e cotidiano, e a redenção é o maior desejo; que só poderá ser realizado com uma outra e igualmente melancólica festividade.

Era uma mulher, e gostava de vestir-se. Gostava de fazer suas unhas, porque não pensava. Estava em silêncio e sem pecar. De repente, lembrou-se de P., o homem com quem convivera há algum tempo, quando ainda muito era jovem. Ela, mesmo sem saber, buscava P. em todos os seus amantes. Abandonara P. porque ele deixou de saber o que era uma mulher nela. Sim, talvez ela deixara de ser uma pessoa interessante. Antes tinha aquele brilho da rebeldia, do idealismo, a disposição para provocações e exaltações, que ao lado dele eram ainda mais altivas. Tinha uma beleza robusta, uma beleza sádica, e um comportamento deveras versátil. Tudo emanava de sua atitude. Sentia-se uma mulher. Mas uma mulher jovem, que ainda necessitava de proteção e todas as coisas que todos os seres humanos necessitam e querem em um relacionamento amoroso, e ele, de repente, havia deixado de tratá-la como antes. Talvez pelo fato de estar há muito tempo juntos, P. começara a acreditar que ela nunca o abandonaria. De certa forma, ele estava certo, pois havia mesmo confundindo-se em uma terceira pessoa. Foi seu grande amor, ela acreditava. E abandonou-o crendo nisso.

O que ocorrida, de fato, era que Marie convivera muito tempo com uma idéia, não com uma pessoa de verdade. Passavam muito tempo sem se ver, e ela consolava-se com a idéia, e aprendera a apaixonar-se pelo sofrimento, pela dor que essa idéia lhe infligia. A mãe, mais uma vez, não a ajudara muito. Marie possuía a teoria de que homens e mulheres possuem maneiras completamente divergentes de enxergar-se a si mesmos e reagir ao mundo. Mas o ser que mais a intrigava, e que era impossível encaixar-se em alguma das duas categorias era a mãe. A maternidade, acreditava ela, destituía a mulher de um sexo; não era parte da feminilidade. Ser fêmea destituía-lhe da mulher que havia dentro de uma mulher. Era assim que aprendera com sua mãe. E por odiá-la e temê-la, jurou nunca ter filhos. Por vezes tinha pesadelos horríveis com a gravidez ou o parto. A androginia bizarra que assistia cada vez mais nítida em todas as mães, e principalmente na sua, continha o pior do que poderia ser atribuído a ambos os sexos. A dominação e a agressividade do macho, a dissimulação e a chantagem da fêmea, o sadismo que isso tudo resultava.A necessidade de posse e controle masculinos, a mistura de inveja e rancor pelo filho, responsável por roubar sua feminilidade e matar a mulher que havia na atual mãe. No caso específico de sua mãe, havia ainda um agravante: seu pai havia a abandonado grávida de Marie, e então todo o céu ruiu sobre a cabeça dela, que enxergava nele um meio e um fim sentimentalmente. Marie era, pois, o fruto de um amor inconseqüente, sádico e masoquista, onde os dois lados eram os culpados. A mãe por querer se enganar quanto ao caráter arrogante e infiel do pai, que tinha outra família já constituída e da promiscuidade e irresponsabilidade insensível do pai.

A festa era motivo de preparação. Marie fazia suas unhas em frente a TV. Como todos os dias, ouvia as idiotices professadas pela sua tela. A festa era uma fatalidade. Não havia nada o que fazer. Nem mesmo pensar. Sentia-se triste, mas sequer se dava conta disso. A roupa estava estendida sobre sua cama. Uma mortalha.  O silêncio que doía aos ouvidos depois que a TV foi desligada. Seus maus passos. Seu ódio. Sua incompreensão. Quando era pequena, pesava que seria muito mais que isso. A medida em que foi crescendo, foi-se diminuindo tanto até não se conseguir enxergar mais. Seria professora, provavelmente, em alguma escola ruim onde lecionaria por certo tempo e morreria só. Morreria cedo, sim. Essa era uma escolha que ousava ainda fazer. Sonhava com flores, muitas flores que cobririam seu corpo, seu jardim, sua casa, sua dor, os sons da cozinha, os gritos do mundo.

Sentia apenas um incômodo. Lera Joyce, Marx, Nietzsche, Baudelaire, Pessoa, Shakespeare. Não havia mais ninguém na sala. Pintava as unhas de vermelho-carne. Fazer as unhas era uma atividade proveitosa, pois não deixava cicatrizes e ela podia machucar-se sem pecado. As unhas sangravam. Um prazer que enchia sua alma, se é que houvesse uma, e tomava seu tempo, fazendo-a esquecer do incômodo que sentia, a angústia que a sua casa, a sua mãe, a sua vida lhe proporcionavam. Esquecia-se de escrever, de expurgar seus males, e deglutia-os, mesmo sabendo que isso faria perecer seus sentimentos. Tentava esquecer. Por isso o vermelho-carne. Pensava como seria divertido arrancar as unhas. Ficariam mais tempo vermelhas e duraria mais que o esmalte. Mas nasceriam de novo para então serem moldadas e cortadas novamente.

Levantou-se de súbito. Pegou o vidro cheio de acetona e bolas de algodão. A festa seria logo e tinha de apressar-se. Vestiu-se belamente. Como há muito não fazia. Sorriu de verdade, a despeito de sua mãe, de suas desgraças pessoais. Sua mãe havia ido primeiro. Ajudaria seus amigos puritanos e bem-educados. Pegou um lindo lenço de seda. Comprido, longo e resistente, passou-o pelo pescoço, amarrou-o à janela subindo num banco, apertou bem os nós e jogou-se. O banco rolou pela sala fria. Era sim, uma grande comemoração. Suas unhas carmim não duraram o quanto ela previa. Tremeu por algum tempo. Não chorou. Estava acovardando-se com certo orgulho, apesar de tudo. Muitas flores, mil flores para Marie, que teria de ir a uma festa. Não mais.

Raquel A. Drummond

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