Simplicíssimo

Osmose

São Paulo, 27 de junho de 2005.

 
OSMOSE


Foi um solavanco, na rua Direita. Alguém mais apressado que ele esbarrou mais forte, assustando-o, e aconteceu. Sua cabeça caiu. Rolou pelo calçadão, parando próximo ao camelô que vendia pilhas a um real. Por sorte não caiu virada para o muro.
O certo é que pôde observar seu corpo indo em direção ao metrô. Gritou, chamou, mas lembrou-se que ele não poderia ouvi-lo, pois suas orelhas estavam com ele, ou melhor, com sua cabeça.
Deu sorte, pois com simples movimentos dos olhos, podia observar tudo o que se passava na rua. Acalmou-se. Lá ia seu corpo sem cabeça, descendo a escada rolante da Estação da Sé, pela mais pura e absoluta osmose. Imperceptível. Passavam por ele, e até davam bom dia. Pivetes olhavam seus bolsos, engraxates miravam os pisantes, donzelas olhavam o terno barato, mas a falta da cabeça não chamava a atenção de ninguém. Coisas de cidade grande, muitas loucuras a pensar… Ou não…
O certo é que passou o dia todo a olhar o movimento nauseante do final da Rua Direita. Rapas agitavam a gritaria dos ambulantes, atropelavam senhorinhas que tentavam chegar ao Poupa Tempo, era a farra dos pivetes mais espertos que todos. A polícia passava a pé, a cavalo, armada, em seu trabalho de colocar ordem no inordenável. Tudo aconteceu, menos sua cabeça, sozinha num canto, perdida nos pensamentos, seu único bem nestes momentos, foi notada. Passou até uma equipe de TV, que teve sua câmera roubada por uma quadrilha conhecida… Mas, nada de perceberem uma cabeça só, sem corpo, sem sustento, sem destino…
As horas passaram. Não sentia fome, pois isso é problema do corpo. Não sentia frio, nem mesmo saudades ou amores, pois o coração estava em outro canto da cidade, trabalhando por obrigação, por costume, por necessidade…
Ao final da tarde, já quase anoitecendo, olhou em direção à escada rolante. Lá vinha ele, seu corpo, o terno amassado, a maleta marrom, os sapatos surrados. Chamou, gritou, esgüelou-se, tentando chamar a atenção daquele corpo surdo e desleixado. Nada. Lá se foi o corpo, e seus movimentos instintivos, em direção ao ponto de ônibus, na Praça Ramos de Azevedo, encontrar a família, assistir TV, jantar, tomar um banho, fazer amor com a esposa distante, virar-se para o lado e dormir…
A cabeça foi recolhida por um gari distraído, em meio aos outros lixos da rua. Hoje encontra-se enterrada junto ao aterro sanitário, sem luz, sentindo o cheiro do gás metano produzido incessantemente, ouvindo as máquinas trabalharem em torno dos catadores famintos…
Seu corpo aposentou-se há dois anos, e hoje leva o cachorro para passear todas as manhãs, recolhe o lixo à noite, dorme sempre às dez horas da noite, logo após a novela das oito…

Marcos Claudino

Marcos Claudino

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