O carrapato de Süskind
Em nosso cenário não há árvores. Não há pássaros. Não há sequer alguma diferenciação entre o abstrato e o concreto. Não há poesia, tampouco contos ou contistas. Somente o que há é uma imensidão do negro, uma vasta eternidade sem começo ou fim que poderia ser nominada como a harmonia sublime, não fosse exatamente o oposto desta. Mas há mais. No centro deste mar preto, posto neste reino destronado, sobre esta massa solenemente morta, há um ínfimo carrapato.
Não se faria necessário, para o entendimento desta tal história, uma explicação etiológica de nosso personagem parasita, seja ele herói ou vilão. Entretanto, aliada a uma vaidade literária (a qual meu querido amigo WK expôs como prova de simplicidade e fraqueza, como se ela não estivesse presente na alma de grandes mestres da literatura universal), impõe-se sobre minha trama, mal cruzada, uma necessidade incontrolável de mostrar brevemente como um filho de uma mesma natureza que a nossa pode vir a possuir formas tão distintas de morbidez, de podridão, de feiúra. O que é certo é que merece tais soturnos elogios: é da espécie do temido Boophilus Microplus, trazida cá pra nossas ocas pelos conquistadores ibéricos e suas zebuínas experimentações.
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A questão que já se perde em meus pensamentos é que o tal carrapato, rebento escorrido da garganta nojenta do inferno, estava da única forma que sua fatalidade genética lho permitia: à espera do nada, mirando nada senão o nada. Estava assim pois é assim que ficam os carrapatos: alheios. Claro, somente até o momento em que o destino lhos empresta a benção da aparição de um sangue vermelho, de uma vida condenada que doe seu sofrimento ao ser estúpido, que não transpira senão para comer o que não plantou. Do contrário, o faz sendo plantado. Passa o animal e em sua superfície sã atira-se o tosco, cravando com voracidade sua bestialidade instintiva.
Esta imagem acima pincelada, prezado WK, é minha imagem do que é concreto. Tudo que não é mais do que matéria, mal-cheirosa e pesada. O denso. Do outro lado da força (palavra que está na moda) mora o leve, o tal passarinho que tu entoaste, o abstrato. Entre eles, carrapato e passarinho, não há nada mais que tudo: o mundo. E é neste ponto que perdeste, pela primeira vez, tua coerência (a qual tanto elogiei em meu primeiro texto). Porque tentaste analisar-me com tua matemática calculista, me outorgando a tentativa de dividir o abstrato e o concreto como se fossem adjetivos simplórios, óbvios, classificáveis. Não. Tudo que faço é encontrar os limites que meu universo (que já classificaste como limitado) me permite. Tudo que faço é equilibrar-me sobre a grande veia do mundo, achando pontos onde possa basear meus passos, conciliar destino e livre arbítrio em harmonia e consciência. E, se há um mundo entre o concreto carrapato e o abstrato passarinho, há também milhões de nuanças donde todo o conjunto de manifestações e sensações, a que chamamos de vida, se abriga.
Tua visão-calculadora, porém, que tanto se mostra exposta em tua face que nunca vi (tudo que fazemos é especular, não?), funciona, sim, em tua visão sobre a literatura. "Escrever e deixar o homem livre para interpretações é tarefa para qualquer um", sim, aí sim mostra tua face arlequim distraído, deixando tua face acrobata para o conto orgasmático com que salvaste tua coluna. Porque, contornando palavras para construir o sábio personagem do vilão, diminuindo-se para surpreender, retirando-se para ousar, fazendo-se estátua para ganhar vida, beiraste a vil secura do malvado que, por medo de perder a elegância e a postura, nunca tira seus planos magistrais de dominação de dentro do seu quartel-general secreto.
"Chego a meu centro, à minha álgebra, ao meu espelho. Em breve, saberei quem sou." JLBorges
Mas dizem, os injustiçados leigos, que as rugas que aparecem em nossa própria pele notamos com mais acidez. Talvez por isto critique esta parte malévola (como insiste em parecer) de nós, mim mesmo que está em ti, com tamanha voracidade. Porque somos um e nenhum. Somos dois e nada.
Mas o mundo não é feito de perfumes, como nos faz acreditar Grenouille (de Süskind), e sim de pensamentos. E, se meu olfato toscano lhe percebe erroneamente como um fruto do difusionismo da rebeldia intelectual, talvez tuas fórmulas ortogonais também estejam a avaliar de forma estática e leviana minhas intenções literárias. Ah, mas o poeta Gabo é uma dessas pessoas comuns, sim, como insiste. Bem diferente daquele outro poeta Gabo que colocaste como pseudo-profeta da ira de Deus. A distância que separa Gabo de Bebo, Bebo de Gabo, é que estou aqui por um fascínio apaixonado pelas relações que nossa massa pesada tem com uma consciência superior que rege nossa tão impetuosa criatividade. Tu estás aqui para mais, em tuas próprias palavras: "Não nasci para morrer como vocês, nasci para contestar a veracidade do infinito". Não serias, tu mesmo, a voz da ira de Deus?
Entre a dureza do carrapato e a magia do passarinho, fico eu: aprendiz. Preferindo admirar a leveza do concreto e buscando-a até onde meus braços mentais a alcançam. Além dali, nada sou. Por que adorar o carrapato? Por que WK?
O animal expurga sua dor em lamúrias. Tenta se livrar do tosco, do inútil, tenta, tenta e tenta. Mas é impotente. Do outro lado do mar da escuridão, se aproxima um outro de sua espécie. Identifica a aflição do chorão e usa os dentes para arrancar o parasita da pele em sangue. Logo a cura virá. O carrapato, mais uma vez expurgado da sua vida, mais uma vez joguete de outrem, cai sem manifestar nada, sem desejar nada, sem viver. É um carrapato.
"Quando o ousaram, primeiro furtivamente e depois abertamente, foram obrigados a sorrir. Estavam extraordinariamente orgulhosos. Pela primeira vez, haviam feito algo por amor." Süskind
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