Digamos que minha celeste obsessão começou no berçário da maternidade. Entre um arroto e outro da primeira mamada, eis que avisto um par de sapatinhos azuis que uma tia de Lady Laura tinha tricotado para colocar na porta do quarto. Sapatinhos azuis, e não marrons. Azuis como todos os sapatinhos, sapatos, tênis, pantufas de vovó, botas de lavrador, galochas, chuteiras e assemelhados deveriam ser. Ainda empapado de resíduos placentários, olhei para o adorável parzinho de lã, sorri marotamente e dei uma piscada, já ensaiando os flertes que teria mais tarde com as garotas de Cachoeiro. Todas, coincidentemente, de olhos azuis. Melhor dizendo, escolhidamente – ainda que nenhuma das mulheres com quem casei tivesse olhos desta cor. Ninguém é perfeito, nem mesmo as boas esposas. Mas são os desígnios do Senhor, e ao Senhor só rendo e componho louvores.
O resto é história, que vocês já estão cansados de saber. São sete décadas de adoração a essa cor que inspira e eleva. Eleva tudo mesmo, já que aquele comprimidinho milagroso, não por acaso, é azul. Mas não nego que vivi também momentos que preferia esquecer, como as inverdades que a imprensa marrom se esmerou em espalhar. Boatos, intrigas, coisas que nunca disse, casos que não tive, emoções que não vivi. Aliás, imprensa ruim, irresponsável e maledicente tinha mesmo que ter esta cor. E pensar que ao longo de anos e anos tive aqueles cachimbos, todos marrons, grudados à boca o tempo todo. Era uma brasa, eu pensava, mas como estava cego…
De ruim teve também, é claro, o episódio do trem. Se fosse o Trem Azul, do Lô Borges e do Ronaldo Bastos, certamente ele não teria passado por cima da minha perna. Nem eu teria, injustamente, mandado o maquinista para o _______, aquele lugar que não posso dizer o nome e que fica abaixo do paraíso e do purgatório.
É, bicho, mas tirando estes poucos infortúnios eu não posso me queixar da sorte que a cor azul sempre me deu. E essa sorte eu quis dividir com o meu amigo Eduardo Araújo, quando ele fez aquela música chamada “O bom”. Ele mostrou a canção pra mim em primeira mão e perguntou o que eu achava. Disse que era bacana e que tinha tudo pra estourar nas paradas, mas que eu trocaria a parte que fala “Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear” por “Meu carro é azul, não uso espelho pra me pentear”. Ele manteve a letra daquele jeito e a música até que fez sucesso na época, mas também depois… não emplacou mais nenhuma, mora? Não foi por falta de aviso.
O que eu queria mesmo era comemorar silenciosamente estes 70 outonos aqui na minha casa da Urca, sozinho com meus fantasmas e minha imagem de Nossa Senhora, assistindo “Avatar” no home theater. Aquele adorável filme que mostra um maravilhoso mundo de seres azuis. Um manifesto ao extermínio do racismo, já que brancos, negros, vermelhos e amarelos não existem. Só os essenciais azuis, a cor que importa. Roberto Carlos Braga é, na verdade, Roberto Colour Blue. Mesmo aos 70, ainda é tempo de mudar o meu registro no cartório e envelhecer em paz com o azul do céu e dos oceanos. Amém, bicho.
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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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