ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO
2. O AMBIENTE DE TRABALHO
3. AS RELAÇÕES PROFISSIONAIS
4. DO PONTO DE VISTA DO PACIENTE
5. DO OUTRO LADO
6. O MÉDICO RESIDENTE E O SEU DIA-A-DIA
7. INTERMEZZO: VOCABULÁRIO MÉDICO-POPULAR
8. ACONTECIMENTOS INCRÍVEIS E NEGLIGÊNCIAS
9. MÉDICO RESIDENTE – A FUNÇÃO SOCIAL VERSUS A FUNÇÃO HUMANIZADORA
10. CONCLUSÃO
INTRODUÇÃO
O presente exercício de etnografia tem por objetivo descrever de forma sintética as atividades profissionais de um grupo de médicos residentes do Hospital Conceição em seu local de trabalho e verificar as relações existentes entre os mesmos, entre estes e seus preceptores e seus pacientes. Para tanto servi-me do conhecimento adquirido durante este ano de 2000, em que tenho trabalhado como médico residente no mesmo Hospital, além de entrevistar especificamente alguns colegas e pacientes, após a exposição dos objetivos do presente trabalho. A escolha do lugar e do tema deveu-se tanto pelo fato de que julguei ser interessante para mim investigar, do ponto de vista antropológico as relações humanas existentes no meu ambiente de trabalho aliado ao fato de que meus objetos de estudo estariam presentes ao meu lado diariamente, não sendo necessário um período de inserção. Isso significa – creio eu seja esse um aspecto importante – ausência de mentiras, desconfianças ou dissimulações durante minha interação com as pessoas. Não poderia de forma alguma “usar melhor a vestimenta” de quem estou estudando do que assim o fazendo. Durante o trabalho, primeiramente descreverei o ambiente de trabalho dos médicos residentes. Daí em diante passarei para as relações hierárquicas e profissionais entre o médico residente, outros funcionários, seus preceptores e os pacientes. A seguir explicarei alguns mecanismos do funcionamento do Hospital e passarei a descrever o dia-a-dia típico do médico residente, passando por algumas experiências contadas por colegas acontecidas no decorrer das atividades e nos plantões. Também será apresentada, do ponto de vista do paciente, uma breve impressão que este tem dos eu médico e dos outros pacientes. Finalmente, serão levantados os aspectos sociais e humanitários da profissão do médico residente. Apesar da grande dificuldade de me distanciar do meu papel de médico residente, eu o consegui, até certo ponto, quando fui ao Hospital por 2 vezes em minhas férias de novembro sem o jaleco branco. Somente aí consegui realmente tomar uma distância crítica entre o meu papel como médico e o meu caráter de pesquisador, de etnólogo, podendo assim analisar alguns aspectos que não conseguia separar normalmente.
O AMBIENTE DE TRABALHO
Ao Hospital Nossa Senhora da Conceição pode-se chegar de uma série de formas: ônibus, carro, táxi ou mesmo a pé, sendo que a entrada principal encontra-se na Rua Francisco Trein. Em frente ao Hospital, vemos um amplo comércio: no lado oposto da rua, temos lancherias e restaurantes, farmácias de manipulação, farmácias comuns, um banco, padaria, lotérica, estacionamentos, lojas de produtos “um e noventa e nove” e vários outros estabelecimentos, além de um ponto de táxi. Do lado da rua em que se encontra o Hospital, existem vários carrinhos que vendem lanches rápidos com cachorros-quentes, xis-búrgueres, salgadinhos, churrasquinhos e refrigerantes, além de uma barraquinha de ervas naturais para “tratamento” de qualquer doença, segundo propagandeia a dona do mini-estabelecimento. A primeira impressão que temos é a de sujeira. A frente do Hospital tem um visual poluído, com todas aquelas barraquinhas, fumaça e cheiros misturados, um misto de poluição visual, sonora e olfativa. Na entrada do Hospital, dois seguranças fiscalizam a passagem das pessoas, deixando passar as que estão identificadas com crachás do Hospital e limitando a entrada de outras pessoas como familiares de pacientes, representantes comerciais de laboratórios farmacêuticos e outros que não possuem autorização específica para entrarem fora do horário de visitas. Os corredores do Hospital são largos, em média de três a três metros e meio de largura, com uma iluminação razoável, baseado em parte na luz solar que adentra as amplas janelas que se encontram tanto nos quartos dos pacientes quanto nas enfermarias em si. Escolhi para meu trabalho a enfermaria denominada 3°C, onde ficam os pacientes de responsabilidade da Medicina Interna, pacientes com patologias eminentemente clínicas e de gravidade considerável. Nessa enfermaria, temos duas partes: uma, à esquerda, onde ficam guardados os prontuários dos pacientes e onde fica uma secretária responsável pelos aspectos burocráticos e de gerenciamento de materiais do posto, servindo também como telefonista e fornecendo informações a familiares de pacientes. À direita, o espaço é reservado para a equipe de enfermagem. No local são guardados medicamentos, materiais para procedimentos médicos ou de enfermagem, seringas, agulhas e coisas do gênero, além de ser o espaço onde os auxiliares de enfermagem preparam as medicações que foram trazidas da farmácia para administrar aos pacientes. Logo à esquerda dessa sala fica então a sala de prescrição, onde os médicos residentes e seus doutorandos buscam resultados de exames, evoluem por escrito e prescrevem seus pacientes. Nessa sala existe uma grande mesa, várias cadeiras e banquinhos (em torno de 10), 2 computadores e uma impressora, além de muitos formulários e papéis de todos os tipos e para todos objetivos, alguns organizados em um escaninho mas outros tantos espalhados pela mesa e até mesmo pelo chão, em uma balbúrdia infernal. Logo ao lado desta sala existe outra pequenina sala onde se encontra mais um computador, uma pequena mesa e duas cadeiras, além de um arquivo onde são guardados artigos científicos de relevância clínica para fácil acesso aos médicos residentes. Nesta sala também há uma antiga máquina de xerox, alugada pelos médicos residentes para que estes possam fazer cópias de livros ou artigos científicos para uso pessoal. Ainda sobre a estrutura física do Hospital, temos no centro do mesmo (já que esse é formado por 3 alas) uma praça ao ar livre, onde tanto pacientes como funcionários podem transitar tranqüilamente. Alguns outros aspectos relacionados aos quartos dos pacientes serão discutidos na parte intitulada “Do ponto de vista do paciente”.
AS RELAÇÕES PROFISSIONAIS
Nesse andar, como em praticamente todo o hospital, o trabalho médico direto é exercido por residentes de Medicina Interna, médicos formados em Universidades federais ou particulares de todo Estado e ocasionalmente fora dele. Esses médicos residentes passam, após conclusão do curso terciário, por um processo de seleção que inclui uma prova escrita, a apresentação do currículo e uma entrevista, sendo então selecionados os melhores para a realização do Programa de Residência Médica do Hospital, que é, na verdade, uma forma de pós-graduação e especialização. Também fazem parte do corpo profissional do setor uma enfermeira por turno (que são três no total: da 7:00 às 13:00, das 13:00 às 19:00 e das 19:00 às 7:00) e 7 a 8 auxiliares de enfermagem por turno. Além disso, existem médicos contratados, chamados “preceptores”, que são os orientadores dos médicos residentes. Estes vêm ao Hospital em determinadas horas do dia conforme sua disponibilidade e discutem os casos dos pacientes com os médicos residentes, dirimindo dúvidas que estes porventura tenham no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento das enfermidades dos pacientes. É claro, existem os pacientes, que são o motivo de ser do Hospital. Os pacientes que estão internados no 3°C são pacientes geralmente graves, pacientes que tenham uma patologia de difícil manejo, pacientes que necessitem internar para realizar uma avaliação diagnóstica intra-hospitalar ou mais freqüentemente pacientes com várias patologias simultâneas ou com seqüelas de uma patologia anterior. São pacientes com doenças renais, cardíacas, pulmonares, neurológicas, oncológicas, endocrinológicas, hematológicas, infecciosas, psiquiátricas e também psicossomáticas. Além do atendimento médico prestado diretamente pelos médicos residentes, pelos enfermeiros e auxiliares de enfermagem e indiretamente pelos preceptores, ainda estão distribuídos pelo Hospital outros serviços que servem de apoio a essa estrutura básica, como por exemplo as especialidades médicas ( Endocrinologia, Nefrologia, Cirurgia Geral, Urologia, etc.) que podem ser contatadas em casos especiais, por vezes complicados ou que necessitem uma avaliação deveras especializada; também existe o Serviço Social, o Serviço de Fisiatria, a Odontologia além dos serviços de apoio ao diagnóstico, como a Radiologia, o Laboratório Central, a Medicina Nuclear, a Ergometria, a Eletrocardio e a Eletroencefalografia, a Ecografia e assim por diante. Algo curioso que pode se notar logo em uma primeira olhada é algum ar de inimizade, uma tensão existente entre médicos residentes e enfermeiras. Isso não pareceu ser a regra, mas por mais de uma vez pude presenciar atrito entre um médico residente e uma enfermeira. Ao questionar ambos sobre as possíveis razões pelas quais tal fato acontece, já que, a princípio o objetivo de ambos é melhorar a saúde do paciente, a resposta diferiu bastante. Enquanto a enfermeira respondeu que isso acontece porque os médicos residentes são muitas vezes muito impetuosos, solicitando para já a realização de certos procedimentos, não compreendendo a indisponibilidade de pessoal insuficiente para adequação do trabalho de enfermagem, por outro lado o médico residente respondeu que isso aconteceria pois a enfermeira se julga “dona”do posto de enfermagem e, além disso desconsidera o médico residente, já que este permanecerá no Hospital por uma média de 2 anos, enquanto ela é funcionária contratada, não precisando se sujeitar às demandas dos residentes. Foi também possível observar que o mesmo atrito não ocorre entre residentes e auxiliares de enfermagem, exceto em circunstâncias muito especiais como por exemplo demora na administração de uma medicação que tem caráter de urgência ou também durante os plantões com a equipe de auxiliares da noite. Segundo grande parte dos médicos residentes, a equipe de auxiliares de enfermagem que trabalha durante a noite é muito ruim e de difícil relacionamento: não administram medicações de forma correta, descuidam de cuidados simples até mesmo como aferir a temperatura axilar ou a pressão arterial do paciente e assim por diante. O motivo pelo qual especulam que isso aconteça é pelo fato de que são os funcionários contratados há mais tempo pelo Hospital, pelo fato de trabalharem à noite e, segundo postulam, com a inversão do ritmo circadiano ocorreria uma maior probabilidade destes tornarem-se irritadiços e pouco dispostos ao trabalho (o que dificulta concomitantemente o trabalho dos médicos residentes, talvez por isso gerando às vezes um sutil clima de inimizade).
DO PONTO DE VISTA DO PACIENTE
A entrada dos pacientes no Hospital se dá de três formas básicas: a primeira é pelo Serviço de Emergência do Hospital. Pacientes com enfermidades agudas procuram a Emergência, são atendidos primeiramente lá e então ficam aguardando, geralmente por dias, um leito vago na internação do Hospital. A segunda forma é uma internação eletiva via Ambulatório, de onde pacientes que são atendidos nos ambulatórios e necessitam de internação são encaminhados. As vagas para pacientes ambulatoriais só se tornam disponíveis após ocupação dos leitos dos andares de internação pelos pacientes que recebem alta da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e pelos pacientes que estão na Emergência. Pelo menos essa é a regra estabelecida, mas o que acontece não é bem isso. Muitas vezes se burla o sistema estabelecido e se interna pacientes via Ambulatório sem que os pacientes que estão na Emergência subam, o que aumenta a permanência destes na Emergência. A terceira forma é a internação “política”, onde familiares ou pessoas indicadas por políticos municipais ou estaduais internam, sobrepujando qualquer regra básica de ordenação de internação. A grande maioria dos pacientes, aqueles internados pelo Serviço de Emergência, são pacientes de classes sociais menos favorecidas, pacientes que não tiveram acesso prévio ao sistema de saúde, ou o tiveram mas têm dificuldade de realizar o tratamento adequado de suas doenças, quer seja por dificuldades financeiras, intelectuais ou mesmo pelas condições de trabalho, moradia e sobrevivência a que estão sujeitos. No andar em que ficam internados, no caso o 3°C, os pacientes ficam em quartos em que dividem o espaço com mais três pacientes, em um total de 10 quartos mais três quartos reservados para isolamento de pacientes com doenças infecto-contagiosas graves ou com imunossupressão e que conseqüentemente não podem entrar em contato com outros pacientes. Os quartos são só femininos ou só masculinos, sendo que ocasionalmente permite-se um acompanhante do sexo oposto, no caso familiar de algum paciente quando este necessita de cuidados especiais ou atenção intensiva, o que nem sempre é possível ser feito pelo serviço de enfermagem. Entre os leitos dos pacientes não existe nenhum biombo ou cortina, o que deixa os pacientes expostos física e psicologicamente a seus companheiros de quarto. Ocasionalmente, pude constatar pacientes em recuperação de grandes cirurgias abdominais, com seu abdômen aberto, apenas protegido por uma tela, em um quarto assim, “semi-privativo”, sendo exposto à “visitação” por parte dos outros pacientes e pior, na hora da visita, por outras pessoas. Isso sem contar a sensação de desconforto que é causada justamente nos outros pacientes que dividem o quarto, como constatei em conversa particular com uma paciente de 28 anos que estava no leito ao lado. Da mesma forma, uma queixa freqüente que parte dos pacientes em relação aos seus companheiros de quarto diz respeito aos pacientes internados por alcoolismo e àqueles internados por acidentes vasculares cerebrais. Aos primeiros porque geralmente são pessoas que internam em mau estado geral, são mal-cuidados e mal-cheirosos, além de que, quando começam a melhorar, também,são considerados mal-educados, pois em geral, pronunciam impropérios. Dos últimos reclamam principalmente devido ao mau-cheiro das escaras,que são úlceras provocadas pela pressão continuada sobre alguma região do corpo, já que esses pacientes não conseguem se movimentar sozinhos. E, diariamente são trocados os curativos dessas escaras, sendo que, principalmente quando infectadas e expostas na hora dos curativos, exalam um mau-cheiro terrível (que pude presenciar por mais de uma vez). Muitos pacientes estão restritos aos seus leitos, pois a patologia que lhes trouxe para o hospital é tão debilitante que os enfraquece ou mesmo previne que estes possam deambular adequadamente, ficando assim totalmente dependentes dos cuidados oferecidos pelo Hospital e por vezes por seus familiares. Isso inclui impossibilidade até mesmo de fazerem as necessidades fisiológicas mínimas como evacuar, urinar ou mesmo se alimentar. Quando perguntamos aos pacientes o que estes pensam de seus médicos, a resposta geral e quase unânime é a de que seu médico é muito bom, que é confiável, lhe trata bem, ou seja, só existem elogios. Poucos pacientes expressam queixas objetivas em relação a seus médicos, e quando estas acontecem, dizem mais respeito a demora na realização de exames ou sofrimento relacionado a procedimentos realizados mas inerentes a esses procedimentos. Interessante observar que, como já citado, os pacientes internados no Hospital Conceição são de classes sociais menos favorecidas, e isso significa que são pacientes que questionam menos seu médico, ignoram mais completamente mecanismos de instalação das doenças, tendo muitas vezes idéias mágicas acerca da origem de sua patologia, ao contrário do que acontece com as classes mais informadas, que estão sempre questionando acerca da doença, das condutas tomadas e qual o plano a seguir. Cito isso porque também é interessante notar que, com os pacientes dessas classes mais informadas, o nível de satisfação é menor, mesmo se compararmos casos similares com resultados parecidos. Talvez, em parte, porque o nível de exigência seja maior e talvez porque, justamente por possuírem uma maior capacidade de argumentação, os pacientes e familiares de classes mais favorecidas julgam poder ter privilégios sobre outros pacientes, esquecendo que estão servindo-se de serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) [o SUS, quando planejado, almejava oferecer acesso universal e integral à saúde de todos cidadãos brasileiros, estando, como podemos acompanhar, pela dificuldade de acesso a consultas, a exames diagnósticos e medicamentos e pelo crescimento dos planos privados de assistência à saúde, em plena decadência]. Muitas queixas derivam do fato dos pacientes terem de esperam internados por muito tempo até a realização de um exame, o que ocorre, após pesquisar seus mecanismos, devido à falta de profissionais contratados para realização desses exames, e não devido a falta de equipamentos necessários. Chegou-se ao cúmulo de o Hospital ficar sem ecocardiograma pelo período de um mês pois o único ecocardiografista do Hospital entrara em férias. (!)
(continua em 1 semana…)
3dutchman
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