Parece incrível que, onde eu vejo equilíbrio, os outros vejam o contrário. Nunca foi uma questão opinativa. É como se, simplesmente, eu tivesse um extra sentido, um dispositivo a mais – ou a menos, insistem alguns – que me permite saborear ao máximo a estabilidade e o comportamento civilizado nas pessoas. Sei bem, ninguém precisa repeti-lo aos ventos, que cada qual tem suas maneiras e seus pontos-de-vista, sería uma ofensa de minha parte conceber a liberdade individual de uma forma distinta a de meus contemporâneos. E, para a surpresa de alguns, é exatamente neste ponto – nas bases do sagrado liberalismo! – que esteio meus principais argumentos em meu favor. A questão é que, fruto de minha paixão quase orgânica pela estabilidade material e pela manutenção da harmonia moral, brotou-me esta rejeição a um ato que parece totalmente natural no restante das pessoas: o gargalhar.
E não se trata, como alguns poderiam de antemão supôr, de uma inquietude despertada pelo som que emitem. Isso, apesar de que em algo realmente me incomode, não chega a ser de todo um distúrbio grave em meu discorrer diário. Talvez seja tamanha a “oferta” de barulhos em nossa sociedade, que minha concepção de mundo já venha auto-programada para recebê-los sem maiores problemas. O que, sim, me tira a paciência por completo e atua em meu cérebro como se lhe enfiassem milhões de mínimas e pontiagudas agulhas cirúrgicas, é o lento contorcer que precede a abertura repentina da boca, o balançar impaciente das cadeiras sobre as pernas e, finalmente, o dobrar oblíquo dos joelhos, deixando o corpo cair para trás e os ombros dançando sempre no sentido inverso das costelas. Desequilíbrio! Todos os meus sentidos me dirigem a esta verdade. Parece realmente – somente se percebe estando atento aos sentidos! Aos sentidos! – que são quase como macacos buscando voltar à caminhar sobre quatro patas, ou restos de uma raça bizarra e agonizante que agacha-se para se aproximar ao pó que lhe gerou um dia. O que tenho certeza é que, somente tocar no assunto choca a cada milímetro nervoso do meu corpo, deixando-me totalmente extasiado. Já me instruiram: nestes momentos é preciso respirar fundo, contrair e estirar cada um dos dedos da mão e contar lentamente até 100 (este exercício me ensinou o velho Dani, que se burlava dizendo que, no meu caso, a dica só valería se a contagem fosse feita em números romanos).
Enquanto exercía um cargo absolutamente acadêmico, esta espécie de sexto sentido nunca me foi prejudicial. Está claro que o mundo intelectual em que convivia não era lá muito chegado ao mal do riso e eu podia estar sempre confortável – e seguro – enquanto estava no Campus da Universidade. Meu medo restringia-se às grandes reuniões docentes ou às festas de final de ano, em que me via obrigado a arranjar argumentos que me liberassem de tais eventos. Apesar de que, desde muito jovem, eu tenha perdido contato com qualquer tipo de família – morreram meus pais e avós meses antes de completar 12 anos e, portanto, sempre quando me refiro a eles visualizo o representante da seguradora que me tornou um homem rico alguns dias depois – é deles que me utilizo para minhas escapadas. Assim, uma nobre avó que sofre de uma síndrome qualquer me evita o confronto com uma turma de estudantes juvenis e um solitário pai na noite de ano-novo me poupa da abertura de vinte e cinco garrafas de champagne na famosa cerimônia dos diretores de cátedra.
No final, foi a tal falta de entrosamento com os diretores que acabaou por desgastar minha imagem interna na Universidade. Depois das duras críticas que recibi pelos artigos em que defendia uma fundamentação schopenhauriana a Joyce – o preço que se paga por não seguir as modas! – fui primeiro obrigado a estabelecer minha posição ética frente a meus colegas e finalmente, como única e última forma de evitar um confronto que quebraría qualquer tipo de respeito que ainda mantinhamos, deixar o corpo acadêmico, abandonar o colegiado de desenvolvimento intelectual que ajudei a fundar e afastar-me de meu retiro de tranquilidade.
Nunca pude ver com clareza aquele vácuo em que simplesmente deixei de existir para o mundo. Lembro de sentar-me na janela do décimo sétimo andar em que fica meu apartamento, com um único e solitário cigarro ao lado. Prometia a mim mesmo, como prova de disciplina, fazer com que durara por toda a noite e, assim, o acendia, tragava e logo o apagava, vendo-me obrigado a gastar todo o tempo que me esperava até a próxima tragada com o único entretenimento que me restava: pensar.
Levei algumas semanas para organizar meu currículo e revisar todas minhas publicações, e tão logo como o tive preparado, enviei a diversos contatos que havia construído no mundo editorial. Confesso que esperava um trabalho como uma espécie de correspondente ou articulista, mas me vi obrigado a aceitar o cargo de especialista técnico em uma revista científica. O grande problema é que tinha que estar na redação diariamente, o que não imaginava que pudesse converter-se em tamanho suplício.
Só trabalhando seis horas diárias com esta raça para saber do que se trata. Jornalistas! Jornalistas! Menos deles e teríamos um mundo parcialmente melhor. São dispersos, disconectos, momentáneos e supérfluos. Menos de cinco dias levei para constatar a impossibilidade de dividir meu espaço vital com esta espécie intolerável. Não pensem que sou eu o monstro desta história, não me encaixo para nada ao estereótipo ideologicamente sensível que preenchem os intelectuais à moda antiga. Estou seguro de que ninguém suportaria tal situação. Até as nove da manhã, enquanto estes corvos certamente ainda dormiam baixo seus ninhos preguiçosos, eu conseguia desenvolver todo o trabalho que me encargavam, com o silêncio da manhã fazendo balançar suavemente a palmeira que tinha fim à janela da editorial. Mas logo antes das dez já começavam a soar os telefones, o abrir e fechar dos elevadores e os jornalistas se amontoavam nas pequenas salas fumando seus cigarros baratos, enchendo de gritos o ambiente e, o que é pior, gargalhando sem parar, como se, a cada frase, lhe descargassem correntes de altas tensão lhes fazendo abrir as grandes bocas cheias de sorrisos e gargalhar, gargalhar, efusivamente gargalhar.
Na segunda-feira seguinte à minha admissão, solicitei uma sala em que pudesse ficar em meu ambiente reservado. Frente à negativa – mais que previsível – da diretora que me havia contratado, propus um horário alternativo em que pudesse trabalhar em paz. Em princípio parecia uma loucura, mas certamente podería estar mais à vontade, como verdadeirament foi durante os primeiros dias. Começava meu labor diário às seis da manhã e, até as nove horas, organizava os temas de meu artigo. Saía antes da chegada da manada de gargalhantes e voltava ao meu apartamento, onde passava grande parte do dia. Às cinco e meia da tarde, então, voltava à editorial, onde outra vez reinava a normalidade, para terminar meus estudos com as idéias e conceitos que já estavam maduros em minha cabeça. Trabalhava com muito mais facilidade a este horário e por algum tempo pensei que, ali, havia finalmente encontrado meu formato de trabalho ideal.
O primeiro incidente que tive foi em um destes dias em que tudo parecia sob controle. Desci da editora por volta das dez da noite e retornava à casa caminhando, como sempre fazia questão. A melhor amiga do homem é a cidade – pelo menos quando está em silêncio. Tão somente saí do edifício e cruzei a rua, notei que um grupo de pessoas conversavam alegremente na esquina da Av. Vicálvaro. Respirei fundo, mas segui adiante sem mudar o caminho. Quanto mais me aproximava, entretanto, mais baixo tornava-se o volúme de suas vozes. Isso me ajudou a relaxar, em um primeiro momento, mas só fez aumentar o efeito do pavor, quando passava ao lado dos casais e fui pego de surpresa por uma gargalhada feito berro, brusca e brutal, como se estivessem ali com a simples motivação de assustar-me. Logicamente, fui jogado no gramado que costeava a esquina. Os quatro me olharam com caras mais do que assustadas, quase ameaçadoras, como se fosse eu um demente ou algo assim. Só tive tempo de levantar-me e correr pela avenida afora, até chegar ao meu apartamento, onde o décimo sétimo andar finalmente me deu um pouco de tranquilidade.
No outro dia estendi-me um pouco mais no trabalho, prevenindo-me de um novo encontro com o grupo da noite anterior. Inclusive me dispus a fazer um caminho alternativo e saí pelos fundos do edifício, obrigando-me a contornar toda a quadra para sair do outro lado da avenida. Entretanto, quando já a tranquilidade invadia-me, no segundo semáforo depois do cruzamento, três jovens, como verdadeiras aparições, como vultos fantasmagóricos de uma nostalgia, saltaram desde um poste de luz, cortando-me o caminho bruscamente, e soltaram verdadeiras “carcajadas”, enquanto despejavam-se pela calçada, como se fossem bebês famintos a chorar. Me protegi daquela agressão violenta, disparei entre os carros que cruzavam o sinal verde e, por muito pouco, não me atropela um ônibus metropolitano que vinha contra minha direção. Utilizei os buzinaços como uma espécie de cobertura para minha fuga e me perdi na escuridão dos cedros do parque municipal.
Semelhantes ataques ocorreram nos dias que se seguiram. Na quinta-feira à noite, cheguei em casa perdido em lágrimas, totalmente inundado em medo e pavor, arranhado de cima abaixo pelas trepadeiras de meu condomínio e tremendo com os nervos saltando-me da carne. Na sexta não fui trabalhar, nem na segunda ou qualquer outro dia da semana que seguia. E foi Simon Paez, velho amigo psicoanalista, quem enviou-me um atestado de saúde para que eu não perdera o emprego em função de tais ausências.
Na outra segunda, já havia passado mais de uma semana e ainda mal podia abrir a porta de casa. O quadro de Beckett, dependurado e emoldurado, me mirava com um desafío nervoso, me lembrando das demências do mundo, das limitações dos horizontes a céu aberto e das virtudes do isolamento. Ali fiquei engolindo minhas dores, sem saber o que esperava, até que, às três da tarde, levantei-me, troquei minhas roupas já empapadas em suor e fui até a editora. Era o dia da entrega de um famoso prêmio jornalístico – único evento ao qual refuguei com um argumento verdadeiro em toda minha vida – e por isso ao chegar encontrei o escritório absolutamente vazio, onde pude trabalhar em total silêncio. Revisei os textos que haviam sido publicados em minha ausência (já os tinha preparados para o caso de alguma emergência) e deixei o edifício por volta das onze e meia da noite. As luzes da cidade pareciam querer acordar todos os meus fantasmas. Assim mesmo não fiz rodeios, cruzei a rua em direção à avenida e preparei-me para o pior. Logo ao cruzar o primeiro poste, comecei a perceber uma sensação estranha. Aprumei o passo, olhei com atenção por detrás dos bancos de concreto da esquina e não vi ninguém, nenhuma alma detrás dos postes, assim que segui em meu caminho silencioso. Aos poucos, senti que algo me adentrava, assombrando-me desde dentro. Percebi que ofegava mais do que o normal, certamente uma reação psicológica, e minha respiração acelerava, ao passo que minhas narinas abriam-se lentamente. E foi aí que logo senti que minha pele enrugava-se abaixo do pescoço, minha língua parecia querer saltar de dentro de minha boca e meus olhos foram fechando-se mais e mais. Até que o peso de meu peito me levou a dobrar os joelhos, jogando o corpo harmoniosamente para trás e naturalmente, como se uma faca cruzasse de lado a lado meu peito inflamado, gargalhei, gargalhei solenemente, até cair de nádegas no solo, respirando fundo para novamente gritar em meio à gargalha e morrer com um sorriso estampado no peito, mais que no rosto; e uma tristeza infinita da derrota que me condenava à morte.
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