Simplicíssimo

Sem Lua e Sem Samba

Sem Lua e Sem Samba


Não importava o dia da semana, Mariano sempre chegava a casa completamente embriagado. Sandra via a velha cena se repetir: o marido abandonava o corpo num recanto da sala, quase em posição fetal; a baba grossa atravessava os pêlos ásperos e curtos da face, escorria pelo o pescoço fino longo até cair no chão de cimento cru. A roupa encardida denunciava a decadência daquele homem.

 

Costumeiramente Sandra se apiedava do marido. Antes mesmo dele chegar, ela preparava café e separava roupas limpas. Entretanto, naquele dia foi diferente: Sandra se embelezou, escovou os cabelos, colocou uma margarida no decote do vestido estampado para ocultar um pouco os seios empinados pelo sutiã. Ela procurou razões para ter se casado com Mariano. Recriminou-se por ter cedido à meia dúzia de dengos e cafunés. Condenou-se pelas luas minguantes, suas prediletas, nunca mais apreciadas. Repudiou-se por ter passado tantas noites em claro, à espera do marido. Noites de exaustão, refugiada na cozinha, à luz do candeeiro, catando o feijão, debulhando milho para a feitura das pamonhas e canjicas que venderia no dia seguinte para os bodegueiros do bairro. Tendo feito tudo isso, ao enfim esticar os ossos doloridos na cama, sobravam-lhe a solidão, a revolta, a pena de si mesma e, invariavelmente, ela chorava sua infelicidade.

Aquela foi uma tarde ímpar. Sandra passou um longo tempo no quarto tentando reinventar a sua vaidade. Pregou botões em algumas blusas, reforçou as costuras dos zíperes de saias e calças, remendou calcinhas, espanou as duas sandálias… Colocou tudo em duas sacolas de supermercado. Sobre a penteadeira improvisada com tábuas de madeira ordinária, sustentada por tijolos furados superpostos; não havia mais desodorantes, colônias, pós compactos, ruges, delineadores para olhos e lábios. O único luxo era um batom escarlate. Ela respirou fundo, olhou-se no espelho, mirou os lábios ressequidos e os coloriu. Perguntou-se: “Você não sentirá culpa, não é?” Tentou reprimir em vão o sorriso persistente.

Ao encontrar o marido esparramado no chão da sala – a casa era pequena, apenas aquele cômodo, quarto, cozinha, banheiro e um pequeno quintal nos fundos, onde ela conservava a lavanderia, o varal de roupas e o fogareiro de ferro –, ela apanhou as sacolas e foi saindo. “Desinfeliz!” Antes de abrir a porta, o cheiro do querosene previamente espalhado pela casa exigia a execução do seu plano de pôr fim em tudo. A caixa de fósforos estava no sutiã. Surpreendentemente, Sandra se sentiu poderosa ao abrir mão daquela possibilidade. Deixou a caixinha onde estava e saiu caminhando devagar no meio do calçamento, sob os olhares inquisidores das estrelas.

O Mariano de quando eles se conheceram no ‘Pagode da Açucena’ 8 anos atrás veio-lhe à memória. Ele era mecânico e à noite tocava pandeiro com os amigos sambistas. Logo ao perceber Sandra no meio do terreiro, ele se aproximou e pediu que abrissem a roda para ela sambar. Sandra requebrava como nenhuma outra e o olhava por cima dos ombros, fingindo esnobá-lo. “Samba, neguinha, samba que eu quero ver!”. Ali ela havia se perdido, naquele rebolado insano das cadeiras. Mariano sorria maliciosamente. Suada, a dançarina sentiu aumentar a contração entre as pernas e o calor nos seios. “Ele cantava uma música linda… mas qual? De quem?” Nos primeiros beijos teve a certeza de ter encontrado o homem certo. As carícias de Mariano se intensificavam. “Tô querendo mais, neguinha". Ele sussurrava e a puxava para si. O cheiro almiscarado, os braços viris, os beijos quentes, tudo nele a excitava.  


”Esta vida é comprida… Eu preciso do amor, que você tem pra me dar…”  A lembrança da música a perturbou. Por um breve instante, Sandra quis desistir do seu intento. “Samba, neguinha, samba!”. Porém o desespero reanimou as suas forças. Ela correu de volta para casa, chegou à porta de entrada com a respiração ofegante e o coração aos pulos. “Tô querendo mais, neguinha”. Ela riscou o fósforo e o atirou ao querosene.

Ney Alexandre

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