Simplicíssimo

Memórias de um homem desmemoriado

Nada como um almoço saudável entre amigos, conversa fiada e um pouco de ociosidade criativa entre um período e outro de trabalho duro, não? Pois bem, durante um desses momentos preciosos, fui provocado por um amigo a explicar qual a importância da História para a humanidade e o impacto de suas pesquisas sobre temas longínquos na vida dos homens de hoje. Para responder esta deliciosa provocação, elaborei um pequeno jogo que gostaria de compartilhar com todos vocês e, assim, buscar explicar as dúvidas do nobre colega. Aviso de antemão que não custa nada, basta usar a imaginaçãp e, no final, optar entre o que é preferível para você e para a humanidade, a pílula vermelha ou a azul?

Pense em sua história pessoal. Tente se recordar de cada momento e de como foram importante para sua constituição atual. Ok? Infância, adolescência, primeiro beijo, primeira transa, formaturas, namorada, tudo. Pense rapidamente, em tudo o que passou até agora. Pronto? Muito bem! Agora pense que num belo dia, no seu aniversário de 30 anos de idade, por exemplo, você acorda em sua cama, e, em pouco tempo, percebe que não consegue mais se lembrar de absolutamente nada de sua vida passada. Você simplesmente esqueceu de tudo e de todos. Vive apenas o presente e, no dia seguinte, se esquece de tudo, inclusive do dia anterior e dos planos futuros. A cada novo dia, você desperta como uma verdadeira "ficha em branco", a ser preenchida apenas durante um dia e, em apenas 24h, substituída pelas memórias do dia posterior. Se você se encontrasse nesta situação, o que você faria?

Frente a um problema como este, muitos recorreriam a dispositivos para registrar todos os acontecimentos do dia. Um gravador, uma filmadora, computadores, pen drives e toda essa parafernália tecnológica. Há também, aqueles com mais posses, que pensariam em contratar jornalistas ou escritores para narrar os acontecimentos daquele dia em diante de maneira até mais interessante do que eles realmente aconteceram. Afinal de contas, todo mundo quer ser interessante, certo?

De certa forma, essas soluções poderiam resolver o problema do esquecimento dos 30 anos em diante. Mas como fazer para recuperar os registros dos 30 anos passados? Como recuperar o que já não dá mais para registrar? Uma solução, seria contratar profissionais que investigassem o seu passado e elaborassem relatórios concisos e fidedignos de tudo o que aconteceu contigo até aquele dia em que acordastes desmemoriado. Pensando assim, é bem provável que você não coloque a pesquisa de sua história nas mãos de qualquer um. Procuraria profissionais éticos e com o compromisso de investigar o que realmente aconteceu nos últimos 30 anos de sua vida.

Esta seria uma boa solução, sem dúvida, mas ainda assim, haveriam momentos impossíveis de serem recuperados. Momentos em que esteve sozinho, sem ninguém observando para que os relatos do que se passou pudessem ser recuperados. Sem contar que também seria impossível recuperar todos os seus pensamentos, conclusões e relações que não chegastes a registrar fora de em sua mente. Levando tudo isso em conta, a pergunta que necessariamente se faz é, valeria à pena investir na recuperação dessa memória parcial? Será que não seria possível inferir muito daquilo que se passou contigo através do conhecimento que se adquiriria neste primeiro trabalho de recuperação?

Caso a decisão seja pela busca de sua memória, parabéns, você acaba de contratar os serviços de um "historiador". Claro, isso é só um exercício mental, não é exatamente um historiador do que estamos falando, mas uma pessoa que pesquise os "documentos" de sua vida para tentar reconstruir o que realmente aconteceu contigo em determinados períodos de tempo. O curioso disso tudo é pensar que, se realmente isso existisse, será que estes historiadores chegariam aos mesmos produtos que você chegou com a sua memória sadia? Será que eles não construiriam uma história ligeiramente, ou até mesmo, radicalmente distinta de sua vida, mesmo que esta não fosse a intenção deles, uma vez que eles não tinham posse de todos os documentos/acontecimentos/informações de sua vida? E se assim for, não seria cada pedacinho de informação que surgisse ao pesquisador, agregando uma melhor compreensão do que realmente aconteceu com sua história, de fundamental importância para você? Pois bem, você está a um passo de compreender a importância do trabalho de um historiador a partir de uma aproximação bem rudimentar do real objeto de estudo de um verdadeiro historiador.

Antes de concluir, gostaria apenas de avançar um pouco mais neste pequeno exercício para demonstrar também o poder que um historiador tem em suas mãos. Não se aborreça, bastarão, deste momento em diante, aproximadamente mais uns 90 segundos de leitura.

Para entender o poder do historiador, imagine que este profissional concluiu a pesquisa sobre sua vida e montou um relato de toda sua história, do momento que você nasceu, até o dia em que você perdeu sua memória. Ele te passa o "livro" de sua vida que, deste momento em diante, passará a ser o seu “grimoire de ouro”, o seu livro de cabeceira, o banco de dados definitivo da sua vida, que será consultado em todos os momentos que você precisar se lembrar de quem você é, do que aprendeu e tudo que acumulou de experiência nestes últimos 30 anos. Partindo deste improvável princípio, você será capaz de perceber o poder que este historiador terá sobre toda sua vida. Perceberá que o tal livro simplesmente definirá o que você é, todo o conhecimento que você tem sobre si mesmo e do mundo que te cerca. Simplesmente, concluirá que, no fundo, o livro é você. E é exatamente neste momento que você para e reflete: “e se durante a pesquisa ele simplesmente se baseou em fontes imprecisas, premissas equivocadas ou mau intencionadas daqueles que colaboraram com os relatos?”, ou pior, você começará a desconfiar se este historiador, sabendo de sua condição de desmemoriado, inseriu falsas experiências em sua memória. E agora? Você ficaria nas mãos de um único historiador? Confiaria cegamente nos relatos de fontes únicas?

Com todas essas dúvidas em mente, você decide contratar novos historiadores que realizarão o mesmo trabalho do primeiro historiador. Ao receber o resultado, você descobre que há dissonâncias nos relatos do primeiro historiador. Algumas pequenas e insignificantes, outras maiores e de impactos mais profundos em sua vida. E agora, o que fazer? Obviamente, as concordâncias começam a ganhar contorno de verdades de sua vida. Mas e as dissonâncias? Como resolvê-las?

Uma das alternativas, seria realizar novas investigações, se possível, a partir de outras fontes ainda não consultadas. Aí vale diário, cartórios, igrejas, escolas, registros de hotel, recibos de motéis, qualquer coisa. Todo documento registram ângulos distintos de sua vida, que permitiriam que os novos pesquisadores, cruzando os resultados de suas pesquisas, pudessem reunir o máximo de consonâncias possíveis sobre um determinado tema ou assunto, tentando eliminar todas as “lacunas” de sua vida. Mas ainda sim, restarão momentos não registrados ou, pior, a dúvida que só um registro dissonante pode causar: e se todos os outros registros estiverem apontando para uma conclusão incorreta? E se o registro mais acurado for justamente o registro dissonante?

Agora chegamos ao grande momento deste jogo, tente transferir a idéia principal por trás da história do “homem desmemoriado” para a pesquisa da história da humanidade e começará a ter uma melhor compreensão da importância da História, o poder que os historiadores têm em mãos e o quão complicado é chegar a conclusões cabais sobre praticamente qualquer tema. A história do homem na Terra nada mais é do que um grande banco de dados que vai acumulando todo o conhecimento do homem nos últimos vinte mil anos. Se não houvessem os tais “livros da vida”, as gerações perderiam todo o seu conhecimento ao serem substituídas, invariavelmente, umas pelas outras. O trabalho do historiador é coletar os documentos de pequenos períodos de tempo e tentar reconstruir a realidade que se passou naquele período específico da humanidade, buscando ser o mais fidedigno possível em seus relatos, tentando contextualizar a totalidade do entorno que cerca o objeto pesquisado: sociedade, política, economia, cultura, etc., buscando, ainda por cima, inferir novos conhecimentos de trechos “perdidos” ou obscurecidos nas fontes pesquisadas, como se fossem os momentos em que o homem desmemoriado se encontrava sozinho ou chegava às conclusões e pensamentos não registrados.

O grande barato da história é quando se consegue elaborar um novo conhecimento a partir de documentos que haviam sido negligenciados ou foram simplesmente ignorados em pesquisas anteriores. Como se na pesquisa da vida do homem sem memória, o primeiro historiador houvesse ignorado uma velha avó que ele tinha e que teria acompanhado os primeiros cinco anos de sua vida. Ou ainda, uma tia que havia sido dada como morta e, de uma hora pra outra, se descobre que estava viva. Percebe o quão importante pequenas descobertas de fontes podem mudar o destino de toda um conhecimento histórico? Percebe como estas mudanças podem simplesmente revelar que toda nossa percepção de realidade pode estar baseado em documentos falsos ou incompletos?

Ainda que um historiador se debruce sobre um tema já pesquisado, toda pesquisa que confirme os resultados anteriores, mesmo os pequenos detalhes, é de extrema importância, pois ajudam a validar os resultados anteriores. Mas a grande aventura mesmo é quando surgem os registros dissonantes, o que é extremamente comum. Neste caso, cruzam-se todas as pesquisas feitas sobre este tema e cada pesquisador assume para si a responsabilidade de sua publicação. Em História, de forma alguma chega-se a resultados definitivos, verdadeiros dogmas da realidade. Havendo registros distintos para um mesmo acontecimento, mesmo que um seja reiterado por milhares de outras fontes, enquanto existir outro, mesmo sendo registro único, sempre restará a dúvida de qual dos registros relata a realidade do fato ocorrido. E se o registro dissonante for justamente o correto? Não é a História uma ciência humana e, como tal, susceptível a erros?

Agora que você já sabe tudo, resta uma última pergunta a fazer: memória ou esquecimento? Qual pílula você quer tomar, vermelha ou a azul?

Roger Beier

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