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Richard Rorty: um cometa de brilho diferente

“Paulo, estou seguindo, mas minha saúde piora dia-a-dia”. Esta foi a última frase de Dick Rorty para mim, há poucas semanas. Dia oito de junho faleceu o homem que fez o pragmatismo americano renascer no último quarto do século XX, e que se tornou tão valoroso para a filosofia e para os Estados Unidos quanto John Dewey.

Rorty foi um cometa que durante as últimas quatro décadas cortou os céus e, com um brilho incrível e distinto, mostrou para todos os continentes que a filosofia podia ser profunda, sem ser chata, podia ser como deve ser, universal, sem com isso desprezar o particular. Rorty foi o mais europeu dos americanos, e aquele que, olhando para a Europa, nunca se esqueceu dos melhores valores da América. Além disso, foi o filósofo que melhor promoveu o casamento entre a filosofia analítica e a filosofia continental, e quem cuidou carinhosamente do fruto dessa união, o neopragmatismo – como o pragmatismo, também este uma filosofia nativa dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Rorty foi o último dos radicais liberais americanos. O que equivale a dizer, em termos europeus, o último dos social-democratas autênticos da filosofia estadunidense.

Seus artigos mais recentes estão, em português, no livro Rorty & Ghiraldelli. Ensaios pragmatistas sobre subjetividade e verdade (Rio de Janeiro, DPA, 2006). Três ensaios dele, três ensaios meus, estão nesse pequeno livro que fecham uma época. Ele viria para o lançamento do livro aqui no Brasil, no ano passado, quando cancelou a viagem ao saber que estava com um câncer inoperável. Nesses artigos, Rorty já não procurava mais a originalidade nas descobertas filosóficas, como foi o caso de seus outros escritos. Ele via sua vida, após os setenta anos, como que seguindo outro rumo. Seus artigos eram de sobrevôo, mostrando então uma capacidade de enorme para grandes sínteses a respeito da história da filosofia contemporânea. Sua preocupação básica, nessa última fase, foi a de mostrar duas idéias centrais de seu pensamento tardio, articuladas com tais sínteses históricas.
Popularmente e resumidas ao máximo, essas duas de suas idéias principais podem ser colocadas do seguinte modo. No campo dos estudos sobre a mente, a melhor metáfora que temos para entendermos a relação mente-cérebro é a relação software –hardware. No campo dos estudos sobre o conhecimento e nas questões metafísicas sobre a verdade, o melhor modo de falar da noção de verdade é aquele escolhido por Donald Davidson (1917-2003): a verdade é uma noção primitiva, como ponto em geometria euclidiana – todos usamos a palavra “verdadeiro”, mas que não se peça para defini-la, pois para ela não cabe uma definição sucinta e única.

Rorty não acreditava que idéias nas ditas “áreas centrais” da filosofia, como metafísica ou epistemologia, tinham de estar articuladas de modo necessário a posturas no campo da filosofia política. Isso, para ele, era o grande defeito do platonismo. Todavia, na prática de seus escritos, ele não via como não deixar de fazer ganchos entre sua idéia minimalista em relação ao sujeito e à verdade e sua forma de conceber a democracia. Para ele, quanto menos idolatrássemos a Verdade, mais estaríamos longe de fundacionistas filosóficos e fundamentalistas religiosos, os que jamais conseguiriam entender o quão boa é a vida sob democracia. Sua democracia, aliás, tinha um sabor especial, americano: não era só o cultivo pelas decisões feitas na base da vontade da maioria, mas fundamentalmente o respeito pelos direitos individuais dos grupos minoritários e dos mais pobres.
Diferente de qualquer outro filósofo de sua geração nos Estados Unidos, ele era conhecedor profundo de línguas e literatura, lia em francês, alemão e entendia o russo e tinha noções amplas de grego e latim. Era um leitor assíduo de Nabokov. Um homem que ficou impressionado como o filme “Crash”. Um adepto da filosofia de Donald Davidson. Um escritor irônico, sagaz e extremamente criativo, dono de um estilo próprio inconfundível. Ao contrário do que suas biografias apontam, Rorty não tinha formação analítica em filosofia dada na graduação, mas, sim, em história da filosofia. Ele seguiu os analíticos após sua graduação, já como professor. E essa visão cosmopolita lhe deu condições de se tornar amigo de europeus famosos, como Jacques Derrida e Jürgen Habermas.
Há uma dívida da filosofia para com Rorty. Pois, sem ele, talvez continentais e analíticos se mantivessem surdos uns aos outros, como o que ocorre, ainda, em determinados lugares subdesenvolvidos. Agora, a filosofia ganhou novo marco. Há uma filosofia antes de Rorty e outra após Rorty. Essa nova filosofia é plural, complexa, gostosa e fala vários idiomas. Ela não precisa adotar teses neopragmáticas, mas ela pode, sim, aprender com o neopragmatismo que, como Adorno escreveu, a “inteligência é uma categoria moral”.

Paulo Ghiraldelli Jr.
“O filósofo da cidade de São Paulo”
Site: www.ghiraldelli.pro.br

PS: um dos últimos textos de Rorty, mandado para o Brasil para o GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da ANPOF, está publicado no site Portal Brasileiro da Filosofia, com o título “Wittgenstein e a Virada Lingüística

Obras de Rorty:

The Mirror of Nature (1979), Consequences of Pragmatism (1982), Contingency, Irony, and Solidarity (1988), Objectivity, Relativism and Truth: Philosophical Papers I (1991), Essays on Heidegger and Others: Philosophical Papers II (1991), Achieving Our Country: Leftist Thought in Twentieth Century America (1998), Truth and Progress: Philosophical Papers III (1998), Philosophy and Social Hope (2000), and Philosophical Papers IV (2007).

Em português, com tradução de Paulo Ghiraldelli Jr. e Alberto Tosi Rodrigues: Para realizar a América (DPA, 2000), com tradução de Paulo Ghiraldelli Jr: O futuro da religião (Relume-Dumará, 2006).

Sobre Rorty: Ghiraldelli Jr., P. Richard Rorty – a filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999.

Paulo Ghiraldelli Jr.

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