Simplicíssimo

Aurora (XLIX)

XLIX – Oh, fracasso divino! Ranges os dentes, e segues inteiramente nu para o túmulo! 

O palácio ardeu por toda a noite, tornando-se uma só massa de cinza e destruição na aurora seguinte. Durante o incêndio, a esplanada foi tomada pela correria e gritos, mas embora me encontrasse, à hora da queimada, ainda nas masmorras a procura de Alermano, a tragédia não parecia tragédia, o fogo cuspido pelas janelas e pelo telhado, a nuvem triunfante de fagulhas beijada pelo vento, recaída por toda a parte era mais como lenta purificação; e a cada momento os mais fiéis esperavam aparecer dentre as abóbadas e colunas flamejantes, o próprio Deus.

Via-se a turba de aldeões proferindo suas parábolas como sábios enquanto a igreja, a biblioteca e o celeiro caíam desordenadamente para dentro do perigo, à hora em que alguns homens santos queimavam devido a seus próprios mistérios, pela própria exigüidade de seus acessos.

 

O ar nas masmorras se tornava mais pesado e algumas fagulhas já atingiam o Carmelita. Detive-me ofegante a olhar quem estava por perto, mas logo percebi que todos estavam condenados. O caminho através dos imundos corredores nos era impedido por alguns cativos agonizantes.

 

“- Já tirei cinco vidas… cinco solidões, por Deus! Mas as destes perdidos, as dou de volta.” – gritei, abrindo espaço aos socos. O Carmelita vinha atrás, falando algo sobre como do fogo poderia advir a salvação, assim como da piedade pode nascer o Anticristo. Encontramos algumas peças de madeira e candelabros provavelmente muito velhos jogados por ali, e os acendemos. O vento que entrava pela ventilação se tornara impetuoso e mais impetuosamente alimentava o medo e o contágio. Vários dos combatentes caíam do teto direto em nosso caminho, pois tudo começara a desmoronar, poeira transportada pelo fogo parecia ser a única entidade capaz de sobrevir à tamanha vulnerabilidade. Os tijolos do corredor desabavam e ficamos isolados do restante dos cativos com os patamares mais baixos daqueles pavimentos se desnivelando num coice, e alguns cativos ficaram empinados dentre as rachaduras do chão que se abria, alguns atingidos pelos destroços que lhes caíam do ar, perdendo a cabeça, os membros no meio do fogo.

 Foi assim que, esbarrando ainda em criaturas infernais que pareciam incapazes de morrer, avistei meu irmão, do outro lado, numa ilha de destroços rodeados pelo incêndio, preso por correntes duplas, balançando a cabeça para o lado de um único companheiro com quem dividia seus elos enlameados e enferrujados.

Puxei o Carmelita pela túnica.

 

“- Veja, é Alermano! É meu irmão! Vamos!” – mas o Carmelita, arqueando o corpo para trás evitou meu puxão.

 

“- Não podemos chegar lá! Ele está condenado, voltemos!” – mas pus-me a correr desordenada e bravamente naquela direção, no que olhei para trás a tempo de ver o Carmelita caído ao chão, fazendo o sinal da cruz para mim, e voltando a toda para o corredor de onde viemos, que já se incendiara quase que totalmente.

 

Quanto mais me aproximei, vi que o companheiro de Alermano nas correntes não era um homem, mas sim a pequena que motivara nossos dois primeiros assassínios, a jovem de nossa província, e os dois estavam tão entrelaçados a ponto de parecerem somente um corpo morto.

 

Gritei, e depois gritei mais. Ele levantou os olhos lentamente, nada mais parecia emitir ruído algum, embora o céu estivesse se abrindo entre nós, e vi que ele me viu, sorriu com dentes agora negros, suas mãos estavam totalmente deslocadas e voltadas para trás, junto às paredes, e pela maneira como suas pernas estavam colocadas, pareciam não possuir mais articulação, tamanho o inchaço vermelho que lhe tomava os membros.

 

Todo aquele labirinto tornara-se uma grande pira de sacrifício quando sua boca formou as palavras: “- Mata-me”, várias vezes com seu rosto avermelhado por um vasto clarão.

 

“- Mata-me, meu irmão, antes que eu desça ao Diabo.” – gritou depois com seu último espúrio de força. Palidamente me vi ainda com o pedaço de madeira flamejante nas mãos, o mesmo que usara como lume para poder ver antes na escuridão.

 

Lembrei-me das palavras do Carmelita: “- da piedade pode advir o Anticristo.” E lancei a parte pontiaguda da madeira em direção a Alermano quando o fogo já começara a consumir-lhe os pés. Com os lábios entreabertos, ele recebeu aquela lança direto na boca com tamanha força que lhe rasgou o crânio, perfurando sua nuca e lhe abrindo a base do pescoço, que se voltou em ângulo reto para trás, cuspido sangue pelo corte. Sexta vítima, sexta solidão.

 

A pequena, já morta, parecia espiar calma ao seu lado com as pálpebras incendiadas, seu roto vestido sujo de barro ganhando vida com as chamas, como se aquele tecido ressequido contasse com elementos de alarme junto ao fogo.

 

Minha visão fora invadida por tais elementos, e caí desfalecido para trás, no que, a tempo, o Carmelita, arrotado de algum recanto daquele inferno, me segurou pelas costas, e com meu pai a seu lado, encontrou a saída para escada até a sala do abade porque a conflagração clareava também as alas vizinhas dos patamares superiores, ainda que cada vez mais fracamente, tanto que percorreram os dois últimos lances às apalpadelas. Levaram-me, então, muralhas afora, abafando o fogo e passando pela multidão agonizante que se amontoava entre palavras de espanto e de prece que traduziam apenas ilusões, e nada mais.

 

O quam salubre, quam iucindum et suave est sedere in solitudine et tacere et loqui cum Deo.

 

Caminhamos em direção à caverna onde se encontrava o navio de Vicenzo Locci por dias, minha curandeira, o galgo (que se encarregara de me acordar), meu pai, o Carmelita e os poucos seguidores de Locci que restaram. Outros uns se uniram a nós na longa caminhada, charlatões, falsos doentes, maltrapilhos, leprosos, sodomitas, infiéis, mercenários, epiléticos, esmoleres, paralíticos, perseguidos, vigaristas, velhacos, simoníacos e traficantes, alguns nos umbrais da morte, sem saber que mistérios esperar na viagem a procura da ilha onde Cristo viveria, sobrevivendo de esmolas dos fiéis e de preces desconhecidas.

 

A queda de Avignon, a cabeça do imperador encontrada fincada numa lança na mais alta torre que sobreviveu ao fogo na abadia, o suicídio de Clemente V, ingerindo cristal em pó durante o ataque; e a morte de milhares nos portões do palácio traduziram, ainda que através de períodos incompletos, a Aurora do dia interminável que hoje vivo, e talvez esta minha inabilidade em ver através do sol seja efeito da sombra que a grande treva que se aproxima está lançando sobre o mundo encanecido e vazio. E o silêncio eterno destes espaços vazios me assusta.

 

Hoje represento os mundos de minha própria criação, onde ninguém é santo, ninguém é forte, apenas minhas práticas irreais e cênicas. Percebo que todos os meus erros possuíam causas semelhantes, no mais das vezes, sequer possuíam causas, mas tampouco isso hoje me importa, pois somente minha negligência é meu princípio, minha credulidade e minha tradição. É como se minha vida, com olhos belos e fixos, me olhasse minuciosamente, e seu olhar figurasse em mim o amor que ela sente por um outro que não existe. E depois… depois tudo é mistério e terror. E uma história  a ser contada.

 

Extingui todos os meus deuses, e não vejo necessidade para a criação de outros. Somente assim me torno solitário e exato como as confluências do céu e sou capaz de transformar meu sofrimento em entendimento devidamente acautelado. A minha visão enxerga apenas o que é claro como o dia, não foi feita para ver o labor das paixões subterrâneas, mas percebo que eu sou minha sétima solidão.

 Partimos em direção à ilha de Cristo não sei a quanto tempo, e a única luz que vejo parece ser a da aurora.

Rodrigo Monzani

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