Simplicíssimo

O Marquês (IV)

"Se Eva perdeu a humanidade comendo um fruto, a atitude inversa, o olhar um fruto sem comê-lo deve ser a que salva."

Simone Weil
Leçons de philosophie (1933-1934)

Na primeira inspiração de ar dentro do salão, Granier notou que algo não estava certo. A atmosfera não podia estar em ordem. Na indumentária de rostos, cadeiras, mesas, algumas venezianas puídas e antigas, esse véu tecido com milhares de fios, faltava o fio de ouro. Granier não sentia nada, nada do que fazia dele o maior farrista da Terra quando se retirava unicamente para as cartas em grutas afastadas da cidade; e durante seus últimos treinos esse fio ficara nele tão forte que Granier já percebia sua ausência quanto mais caminhava, passando pelas lojas arrastando os pés, vencendo a ladeira da Igreja e aquelas dos bairros vizinhos.

Muitas vezes ele ficou parado, apoiando-se na parede de uma casa ou comprimindo -se num canto escuro, com os olhos cerrados, a boca semi – aberta e as narinas infladas, quieto como um peixe em caça em águas rasas, escuras, a escorrer lentamente. E se, por ventura, uma lufada de ar lhe lançava novamente a lembrança do mundo, Willian Granier a trancafiava nos olhos e seguia através das hortas, plantações e antigas ruas a passos lentos, fazendo o possível para esquecer o medo que sentia das imagens de um salão de carteado.

Granier olhava para o mundo como um cego, não, não como um cego, pois estes ainda contam com olhos da mente e do cérebro, mas o cérebro de Will parecia ter se originado dos olhos, e não os olhos do cérebro, o que lhe garantia uma estranha opacidade dos corpos e a perda do olho da mente, obstáculo, agora percebia ele, para que pudesse se sentir liberto, oportuno e racional. Sem tal oportuna liberdade da razão, Granier não passava de um ser corpóreo, finito, perecível e medíocre; e sabia disso pela natureza febril, veloz com que o mundo se abria a sua frente, a luz desprendendo dos seres, de maneira tenuíssima, imagens tão sagradas que ele apenas as poderia temer. Por causa, ou talvez apesar de seu medo, Will tenha, passivamente e por prazer, se afastado em seu simulacro mentiroso e pessoal, criando para si uma imagem de si mesmo, para a qual ele poderia olhar com a mesma insatisfação que sentia pelo mundo, mas cuja aparição não lançava terror em seu espírito.

Willian Granier queria o pôquer de maneira aguda, intensa e ardente; seu olhar não poderia ser apenas clarividente, mas também desejoso, orgânico… essa foi a falta que sentiu ao, pela primeira vez, inspirar o ar dentro de um salão de carteado. Era, para ele, um universo onde as forças de atração e repulsão se anulavam, se contrapondo algumas vezes ao seu objetivo de estar ali: a paixão. Obviamente poderia aprender algo nestes salões, mas a paixão nutria sua genialidade, era sua linguagem da vontade e da força, antes de ser órgão do conhecimento. Pensou que, talvez, estivesse muito atento, pois a atenção tudo sacrifica para poder ver e saber, mas sem a luz desta atenção, sua vontade se esvaía em veleidade, submergindo-o num mar de ilusões excitadas por um ego só preenchido dele mesmo, Willian Granier, o maior jogador de pôquer da história, condenado à prisão dentro de si até a expiação.

Naquela noite escura de maio, aprendera que somente sua atenção o resgataria desse cativeiro. Por um instante sentiu-se um militante de si mesmo, disposto a libertar Willian Granier de Willian Granier, e o resultado seria o maior dos subprodutos de sua razão: um grande animal selvagem. A razão coisificava seus prazeres e paixões pelas cartas de baralho e lhe dava um sentido estético; mas ele apenas poderia admitir sentir tais prazeres e paixões admitindo antes suas instâncias próprias de um animal, pois ao negá-las Willian Granier se tornava incapaz de compreender a totalidade de sua arte, a totalidade da arte que somente é totalidade de corpo e alma.

Granier, consciente destes pensamentos, tremia. Assaltou-o o desejo de desistir dos seus projetos, perder-se na noite e afastar-se dali. Cruzaria montanhas nevadas sem descanso, correria entre as matas até a cidade vizinha, se arrastaria para alguma velha gruta abandonada, e lá dormiria, comeria corvos e morcegos congelados na neve, seria como lenta agonia tal asfixia interna, até que o anjo cego da morte levasse dele o medo.

Granier não seria, porém, Granier se a sensação fatalista o tivesse dominado e satisfeito por um longo tempo. Para isso ele possuía uma vontade de auto-afirmação demasiado persistente, sua animalidade, um modo de ser muito elaborado num espírito selvagem. Sem roubar-lhe o caráter, seria preciso controlar a fugacidade que existia na idéia de desistir, então contentou – o voltar ao seu amontoado de tábuas, caminhando rápido a passos largos seguindo os focos da luzes. Morava numa área alagadiça, mal cheirosa e convencida de seu fracasso nos subúrbios dos campos de Bradford A. Greenwood. Esse lugar, o ponto mais distante das pessoas na cidade, encontrava-se no maciço central de uma planície, cerca de cinco dias de viagens ao sul até a próxima cidade, perto do cume de um vulcão que se erguia crepuscularmente céu adentro. A área consistia num enorme cone de rocha cinzenta e estava rodeada por um antiplano infinito, parco de vegetação onde só crescia musgo cinza e capoeira cinzenta, da qual, aqui e acolá, afloravam pontas marrons de rochas como dentes podres e algumas árvores carbonizadas por incêndios. Mesmo à luz do dia essa região era tão irremediavelmente antieconômica que até o mais pobre pastor não teria conduzido até ela suas criações. E à noite, sob a pálida luz da lua, em seu ermo abandonado, o local parecia não mais pertencer a este mundo.

Ao chegar, Will depôs o corpo e, como que petrificado pelo sentimentalismo de seus pensamentos, ficou ainda acordado por algum tempo que lhe pareceu enorme, até que o último espúrio da razão parasse de espetar-lhe as retinas. Ficava olhando com os olhos arregalados a sua frente e via seu crânio no reflexo do espelho, tão vazio quanto ele mesmo. Então, caído de lado, de um momento para outro afundava num sono como que narcotizado. No mesmo momento, o próprio Granier interno adormecia e seu sono era tão profundo quanto o do Granier externo, pois os feitos hercúleos e os excessos de um esgotavam igualmente o outro.

No entanto, não acordava refeito de si ou do sono dos justos, mas tão somente no abrigo de tábuas e pedras ao final dos campos onde morava, sobre o solo duro, na escuridão. E sentia-se mal, com fome e sede, calafrios e mal – estar por sentir medo dos lugares onde residia sua ambição. Saía se arrastando até a porta.

Lá fora era uma hora qualquer do dia, em geral acordava à noite com a claridade da lua gotejando em algum local escorregadio de sua cabana. O ar lhe parecia poeirento e asfixiante, a paisagem dura, ele se machucava nas pedras. E mesmo as imagens mais suaves lhe atingiam com força os olhos, corrosivamente, desacostumado que estava ao mundo. Era como se andasse exposto e desnudo, indefeso.

Ia até o local da água, lambia a umidade da parede. Isso era uma tortura, o tempo não tinha mais significado, o tempo não tinha mais fim num mundo real que lhe queimava as retinas. Arrancava pedaços de musgos e líquens das pedras, engolia-os e corria ao redor da cabana como um urubu que voa em círculos ao redor da presa agonizante, sabendo que a satisfação, ainda que tardia, é ainda uma satisfação.

Deitava-se contra suas tábuas caídas, abria os braços e ficava esperando. Tinha agora de manter o corpo bem quieto, bem quieto como um tonel que, por excesso de movimento, ameaça transbordar o Granier interno para fora, se perdendo sem rastro, sem vestígio, num espiral ascendente dentro da noite, enquanto o Granier externo permaneceria aterrorizado no escuro.

Pouco a pouco conseguia controlar a respiração, seu agitado coração agora batia menos excitado. E de súbito a solidão caía sobre seu ânimo tal qual negra superfície de espelho, enquanto cerrava os olhos. Abriam-se os morosos portões de seu interior, e Granier entrava, reiniciava o mesmo espetáculo em seu teatro particular, tão bruscamente quanto luzes acesas no escuro e ele sentia esta simplicidade como uma salvação.

Assim passaram dias, semanas, meses e depois, um ano inteiro. Durante esse tempo, transcorria uma guerra no mundo exterior, uma grande guerra. Combatia-se na Silésia e na Saxônia, em Hannover e na Bélgica, na Boêmia e na Pomerânia. As tropas dos reis morriam em Hessen e na Westfália, nas Ilhas Baleares, na Índia, no Mississipi e no Canadá, isso se não tivessem sucumbido ao tifo durante o percurso. A guerra ia custando a vida de massas aos reis, seus reinados coloniais e tanta podridão aos países que, por fim, a lamentaram e a terminaram.

Foi quando Willian Granier desejou voltar a um salão de carteado.

Rodrigo Monzani

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