Simplicíssimo

*Pústula Segunda…*

    A maldade humana: Intrínseca ou adquirida?

Questionar os valores morais implica descrever sua origem e sua história. Pensar a maldade ou qualquer valor moral como intrínseco seria negar toda a liberdade a qual o homem está condenado durante toda a sua existência. Essa liberdade implica na responsabilidade do ser humano sobre a construção de sua essência, sobre as suas ações e as conseqüências das mesmas; não só no ponto de vista individual, mas também coletivo.

    Crer em valores morais que estejam precedendo a experiência ontológica condena as teorias filosóficas à mais pura inutilidade, visto que o pensar ético seria desnecessário senão para  fazer-se retornar a essa moral ou fomentar essa suposta “verdade absoluta” a priori, já que os valores morais (mal, bem, virtude, vício…) corresponderiam a uma natureza da qual o homem seria um eterno vassalo; uma marionete suscetível à predisposição para o bem ou para o mal, não sendo coerente responsabilizá-lo por tal.

   Friedrich Nietzsche dizia que os fracos colocam o bem como a negação da ação dos fortes. Mas o que determinaria então quem são os fortes, bem como no se constitui sua força, sua verdade, senão uma justificativa igualmente inata ao ser humano? Nietzsche propunha que o verdadeiramente bom e belo era a “Vontade de Potência” (“Wille zur Macht”), e aquilo essencialmente mal era tudo o que se originava na fraqueza; ou daquilo que negasse o princípio do “Wille zur Macht”.

     Porém, somente pode-se afirmar que algo é “essencialmente” belo e bom ou é “essencialmente” mau quando se possui alguém ou algo que determine esta essência. Se não há uma outra essência criadora e predisposta a julgar tais valores, a maldade e a bondade passam a ser relativas; porque não correspondem a nada que esteja além do homem, seu único construtor e aquele que sofrerá as conseqüências das aplicações desta sua criação moral.

   A argumentação dos metafísicos e crentes em uma verdade absoluta constrói, de fato, um enorme conforto para a consciência humana, que poderá repousar diante dos questionamentos e das revoluções, agarrando-se cada vez mais à idéia de que o “mundo está perdido”, de que “os valores e as verdades vão sendo esquecidos”, como se houvesse “a verdade”, e não “uma das possíveis verdades”.

   Ao dizer “Deus está morto, e nós o matamos”, Nietzsche rompe com a metafísica e nos apresenta o homem como seu único senhor e juiz. Entretanto, Nietzsche aboliu a idéia de um Deus que justificasse a existência humana, mas dotou o homem de uma mesma metafísica, condenando-o e ela novamente; ou seja, partiu da premissa de que houvesse uma força (ou bem, ou Vontade de Potência) e uma fraqueza (ou mal) igualmente a priori.

   Outra possibilidade seria a de que para Nietzsche, Deus realmente estivesse “morto”, mas que o homem necessitaria de uma liderança, ou alguém que o auxiliasse a descobrir-se enquanto “para além de si mesmo.” Se ele mesmo fosse este líder ( Nietzsche nos apresenta então a idéia do profeta Zaratustra), enquanto tal, esse homem teria não só o direito, mas como também o dever de “guiar” os fracos ou liqüidar com sua moral (essencialmente fraca) e sua existência, que prejudicariam a ascensão do “Übermann”, ou “para além do homem”, o triunfo da “Vontade de Potência”. Tal intransigência nos levaria a outro erro; uma verdade ortodoxa (de Deus) seria abolida, e em seu lugar, surgiria outra (a metafísica do ser; “endeusando” do homem), igualmente absoluta, dogmática.

   Pode-se concluir, portanto, que não importa de qual verdade nos alimentamos, mas se esta verdade é uma escolha consciente ou se estamos condicionados a ela de uma forma que acabamos por nos alienar das outras possibilidades e até de nós mesmos. Este é o ponto crucial à respeito importância das discussões éticas e da exploração da metafísica a qual estamos submetidos.

   O dogma é mais poderosa, convincente e por isso mesmo fácil dentre todas as  “verdades”. Por isso mesmo ao longo da história, o ser humano, apesar de todas as suas conquistas intelectuais, de todas as reflexões a cerca do mundo e de sua subjetividade, continua com a necessidade do sagrado. O sagrado representa a anulação da responsabilidade de escolha e de construção e julgamento próprio do bem e do mal, pois não cabe aos homens questionar valores inabaláveis e intrínsecos; impostos a ele pela criação. O sagrado, o dogma, representam aquilo que o homem não pode alcançar, e nem mesmo pode almejar, pois a partir do momento em que está acessível à humanidade, perde seu caráter sacrossanto.

   A verdade absoluta, assim como a teoria de que os juízos morais estão a priori , manifestam-se não só e dogmas ligados à religião, mas também fomentam-se significativamente através das ideologias políticas, principalmente nas de característica totalitária, na medida em que negam a própria realidade concreta para “comprovar” suas teorias. Encontramos um claro exemplo através da crítica de George Orwell em seu livro “1984”, em que Winston, personagem principal do romance, que vive em um   regime ditatorial, totalitário; cujos lemas são: “Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força”. Percebe-se o quanto os valores são manipuláveis até mesmo pela linguagem (fato evidenciado brilhantemente por Orwell em “1984”) utilizada em tais regimes, onde a força ideológica sobrepõe-se à realidade.

   Para um nazista na Alemanha de Hitler, as agressões contra os judeus, comunistas e homossexuais era um traço de coragem e fidelidade à nação e à raça ariana. As ideologias totalitárias falam, num primeiro momento a favor de um bem absoluto, e defendem a sua “humanidade”. Para um nazista, judeus não são parte deste conjunto chamado “humanidade”; e como estão a favor da “bondade suprema”, da “verdade absoluta”, possuem todo o direito de tomarem as medidas que se fizerem necessárias na luta por sua verdade, considerando irrelevante tudo aquilo que está contrário à sua ideologia. No caso exposto, era a ideologia vigente no tempo e no espaço em que se encontrava.

  A concepção platônica da moral é extremamente perigosa para o homem; este que possui apenas sua liberdade num primeiro momento da existência, e que está condicionado a ela por toda a vida, e ainda que a renegue; esta ação só é possível através dessa mesma liberdade (ainda que renegada) a qual a existência o condena, pois se ele permite-se renegar a sua própria condição, isso é uma escolha; uma escolha livre.

  Jean-Paul Sartre, um dos maiores filósofos do séc. XX, afirma que “Todos os homens estão condenados à liberdade”, e por isso mesmo à angústia. Esta manifesta-se quando ele toma consciência de si, do Outro, de sua responsabilidade por suas escolhas, e de que é nada. Essa “nadificação” a qual o homem se encontra é o alicerce que sustenta a plenitude da existência humana; pois se houvesse algo metafísico (Deus, moral) e se isso fosse anterior a ela, justificando-a, o homem perderia todo o seu valor e sua responsabilidade sobre si. Sartre nos diz também que  “A existência precede a essência”, e por esse motivo não se pode considerar as condutas humanas como fruto de uma “índole” ou “alma”( não no sentido do Cogito* Cartesiano, em que a alma é tida como a razão; mas no sentido em que o senso comum costuma empregá-la; sendo a alma um espírito dotado de características inatas, anteriores à existência).

   O conceito de liberdade exposto por Simone de Beauvoir em sua obra “O Existencialismo e a Sabedoria das  Nações” é pertinente a esta discussão acerca dos juízos morais: “A liberdade tem como conceito puro ser algo conquistado. Partir da premissa de que haja um livre arbítrio ou uma liberdade outorgada é deturpar seu conceito, já que a liberdade encerra em si a luta genuína e voluntária do homem sobre a conquista de si mesmo, de sua própria construção, bem como a sua condição de sujeito existente em si, para si e para o outro.”

É nessa liberdade que reside a capacidade do ser humano de modificar sua conduta e conseqüentemente a sociedade em que vive, porque a partir dela os valores morais são criados e modificados, e a partir dela que o homem vivencia a experiência de escolher e encontrar-se em sua angústia, percebendo que a maldade, a bondade ou qualquer fator essencial a ele não podem ser impostos, da mesma forma que a moral não deve ser justificada com argumentos irracionais, que visam, na maioria das vezes, alienar, manipular, explorar.

   A maldade enquanto construção cultural, no ponto de vista sociológico, nos permite retomar Nietzsche, que faz a interessante conexão entre bem/mal e força/fraqueza, respectivamente, visto que na sociedade de crença cristã e  ideologia burguesa na qual vivemos, as virtudes são aliadas à propostas que possam satisfazer a ambas as categorias: a cristã e a neo-liberal. Uma auxilia a outra, como pilares complementares entre si na estruturação política, social e econômica. Como ideologias vigentes, tudo àquilo que foge a regra de seu código moral é tido com mau e professado como maldito, ruim, apesar as aparente “democracia” e “liberdade de expressão” pregadas.

   Especificamente no Brasil, onde a Igreja Católica Apostólica Romana de Sua Santidade , o papa Josef Ratzinger (ex-soldado da SA, ou Polícia Nazista; diga-se de passagem), goza de enorme influência sobre a população, os direitos dos homossexuais à união civil, à adoção de crianças entre outros são vetados. Os direitos das mulheres também são prejudicados. Apesar das conquistas do Feminismo em países como Suécia, Finlândia, Dinamarca, Holanda etc., no Brasil as mulheres ganham, em geral menos que os homens, e ainda não possuem direito ao aborto legal.

   No mesmo país de fé cristã, em que se permite a exclusão de homossexuais, negros, indígenas, assim como preconceitos e violências das mais variadas formas, permite-se também a corrupção em nosso governo, a alienação política e intelectual de nosso povo, a desvalorização de nossa humanidade, de nossas diferenças individuais e a proliferação da massificação cultural.

   Utilizando de nossa liberdade, do conhecimento de que nada é inato ao homem, e de que a responsabilidade é nossa, não só por nós mesmos e mas por toda a comunidade humana, devemos refletir sempre sobre o que nos faz compactuar com episódios como aos que assistimos quotidianamente. Refletir, sobretudo, sobre as conseqüências de nossos atos em relação à verdadeira “maldade” cultural, procurando meios de exercer a forma mais plena e honesta de nossa liberdade: através do engajamento e da conscientização. A ética é a única saída para que a moral acabe. E que com ela acabem as mazelas causadas pela ignorância e pela alienação, seja ela ética, política, individual, coletiva, e sobretudo subjetiva.

    Afinal, “Escravidão não é liberdade, Paz não é Guerra e Ignorância não é força.”

 

 

 

* “Cogito, ergo, sum”  ou  “Penso, logo, existo.”

Raquel A. Drummond

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