Simplicíssimo

O acrobata e o jovem arlequim

"Também a nota pelo retorno do Gabriel Silveira e do Bernardo WK, grandes participações".
Rafael Luiz Reinehr – 29/09/2004

Hei Gabo, sabia disso? Estamos juntos a mais tempo do que pensávamos; unidos por algo em comum, que agora é mais forte que o Netuno de tuas poesias e mais denso que o nosso pobre mundo véu de sombras. Na época do nosso primeiro encontro, não lhe dei a importância necessária, Gabo para mim era só um nome que apesar da ordem alfabética, vinha antes do meu. Agora acabou, conheço Gabo melhor do que imaginavam os incas conhecer o sol, parece que durante todo esse tempo que te ignorei, cheguei-te a uma vírgula, e quem sabe a um simples ponto final.

O poeta apaixonado pelas "relações entre o homem abstrato e seu contexto concreto" empregou algumas palavras curiosíssimas em seu ultimo texto; palavras que me fizeram pensar, palavras que estavam longe do meu repertório pobre e infantil. Sem ter para onde correr, tive que procurar o significado das tais em fontes mais seguras que a minha dedução, e achei quase todas (que não eram poucas) as palavras mágicas de Gabo; e numa segunda passada pelo texto, tive um alcance bem maior. Com quase certeza, Gabo remeteria esse fato à uma dialética (palavra querida pelo poeta) alemã, e me aconselharia ler novamente.

 

Pablo Picasso. Acrobat and Young Harlequin. 1905. Oil on canvas. Barnes Foundation, Lincoln University, Merion, PA, USA

 

Gabo é o tipo de pessoa comum, do tipo que escreve simplesmente para satisfazer vaidades literárias, provavelmente você, leitor, também escreve assim. Isso é pouco. Pouco porque falta concreto, pouco porque fica fácil, frágil demais. Escrever e deixar o homem livre para interpretações é tarefa para qualquer um; conhecer a fundo as palavras e seus antônimos, suas aliterações e seus sinônimos, se tornar um operário lingüista é como decorar a tabela periódica, e a literatura maquinal, se bem operada, acaba parecendo sagaz e subversiva.

Tudo o que faço é especular, e Gabo também.

Não pude deixar de notar como o poeta Gabo gosta de representar as pessoas, inclusive ele próprio. No último texto, Gabo me faz parecer uma rocha, uma pedra negra, uma máquina quebrada e um precipício. Talvez essas analogias tenham a ver diretamente com a percepção de Gabo da minha literatura, ou é apenas aquela velha vaidade literária. Gabo se refere como um passarinho, uma pena, um sopro de ar e chega a insinuar entre as linhas que a sua palavra é a própria cólera de Deus. A impressão que tenho é que Gabo se vê como um elfo: livre, corajoso e protegido, enquanto me concede o lugar de Ogro nesse mundo de sombras que ele criou. Enfim somos todos monstros.Percebi que Gabo tem uma percepção um pouco limitada do "concreto e abstrato" que propõe, onde a pedra é matéria e o egocentrismo não. Afinal o que é de concreto? Não Gabo, não tenta definir isso… pare de dar voltas infinitas nesse contexto que você procura, parece um cão atrás do rabo.

Bom, então para lembrar dos velhos tempos, e quem sabe render mais papo pra próxima edição, segue o conto que nos uniu, e que você talvez não tenha lido.

Abraços do já congelado Bernardo WK

Ps. Obrigado pelo "o jovem que carrega a bigorna do amor sobre a racionalidade". Talvez meu discurso seja um pouco influenciado por um certo argentino… Aliás, um tango me cai bem melhor que um blues!

O Julgamento de Caim

As lágrimas escorriam desenfreadamente me fazendo soluçar de tanto que as engolia, meu reflexo no espelho mostrava como os olhos podem ficar vermelhos de sangue podre e coagulado. A pia estava gelada, tentei enxergar-me melhor, tinha o olhar das pessoas que sabem que vão morrer. Olhando o espelho berrei de novo, desta vez tão alto que ecoou pelos cantos do nada. As penumbras se tornavam escuridões muito rápido, não pensava, ou pela dose de remédios ou pela falta de ar. Já havia virado mais de duzentos comprimidos de todas as tarjas. Não conseguia levantar a cabeça, meu corpo pesava tranqüilos trezentos quilos e só o reflexo me mantinha de pé naquele momento, por ele só enxergava minhas mãos. Ainda apoiado na pia, abri o espelho babando líquidos que jamais imaginei existir dentro de mim, agarrei um vidro de alguma coisa, o ultimo remédio do armário que antes mais parecia uma farmácia, engoli tudo de uma vez num susto reumático e senti meus músculos explodindo sincopadamente. Milênios depois recobrei minhas forças para andar. Atravessei o corredor com pés de elefante até a porta do apartamento, agarrei a fechadura e puxei três vezes para fugir dali, fui cuspido escada abaixo pelo impulso contrário. Despenquei uns quarenta degraus de mármore e azulejos. Fiquei no chão do andar de baixo com a cabeça aberta, sangrando e tendo alguns espasmos. Cravei os punhos no chão, fechei os olhos de sangue e levantei. Tarde demais, com um rombo na cabeça e todo disritmado, percebi que só havia rolado até o descansar da escada, me desequilibrei de bebiçe vertiginosa e fui tragado para o centro da terra, mais quarenta degraus de história. Mal havia arrebentado as costelas, me levantei do chão, com a cabeça berrando o eco da dor e os pés pesando elefantes, as mãos em lascas vermelhas, subi os dois lances da escada pintada de sangue, entrei em casa e fui até o quarto vomitando órgãos vitais e arrotando células-mãe, abri a gaveta do criado mudo, tirei o 38 e atirei na minha cabeça da forma mais certa de morrer, por dentro da boca, onde nada poderia sobreviver para dizer quem fui. O tiro me desconstruiu e não me dei conta de que ainda estava em pé quando por impulso suicida me taquei do sétimo andar.
Acordei deitado num acolchoado roxo, vestido de festa e sem me lembrar de nada. Haviam pessoas chorando em volta de mim, num ato reflexo de lucidez, levantei e corri.

 

 

***

 

Quem é o acrobata? E quem se arrisca a ser o arlequim?

 

 

Bernardo WK

Comente!

Deixe uma resposta

Últimos posts