Simplicíssimo

A Cerca de Pedras

– Embarca – me disse ele.

Saltei imediatamente para cima da carroça. Ele olhou-me com desdém e bradou:

– Vai pegar tuas coisas e volta logo que temos pressa.

Foi o tempo de um relâmpago para voltar com minhas roupas enroladas num cobertor, que me ajudaria a resistir ao frio durante a viagem.

Nosso destino: Uruguai. Muitas estórias ouvia sobre os castelhanos, mas agora iria viver uma ao lado de meu pai e alguns amigos, a maioria lindeiros de nossa chácara. Meu pai é um dos poucos que restam na arte de construir cercas de pedras e acertou a construção de uma grande mangueira, com bretes e currais. Rumamos para lá em meados de novembro para retornar por volta de fevereiro ou março, dependendo do clima, das pedras disponíveis e dos peões que nos conseguissem no país vizinho. Todos contam maravilhas da República Oriental do Uruguai e me fazem sentir inveja dos uruguaios, por suas conquistas, por sua liberdade, por sua soberania.

Foram três dias no passo lento das carroças. Não podíamos cansar demais os animais e a paciência passou a ser uma das qualidades necessárias àqueles dias. Tanto que aprendi a conviver e lidar com ela. A paisagem da campanha se desdobrava a nossa frente e por vezes parecia que estávamos no mesmo lugar por horas. Nesses momentos tinha que fechar os olhos e agarrar-me a carroça, se caminhando, ou baixar a cabeça até que só visse o capim passando por entre as frestas da mesma. Aproveitava, como passatempo, para conhecer melhor as ferramentas que levávamos. Entre martelos, marretas, talhadeiras e punções pude verificar alguns cordões de couro, que mais tarde saberia que o usariam como uma espécie de luva para lidar com as pedras. Não tinha tido muito tempo para me familiarizar com a profissão, mas começava a conhecê-la melhor.

A recepção na fazenda foi mais fria que o entardecer primaveril do pampa. A pouca comunicação que se estabeleceu entre nosso grupo e o capataz serviu para nos colocar a par das instalações onde ficaríamos, junto com os outros peões da estância. Como éramos os últimos a chegar, depois até dos cortadores de pedra, coube-nos apenas um cômodo, onde arrumamos nossas cousas pelos cantos. Foi a maneira que encontramos para que todos tivessem, pelo menos, onde se esticar à noite. No dia seguinte, iniciaríamos a empreitada e precisávamos descansar. Essa atitude era unânime, consenso, e meu pai tratou de deixar claro para todos logo após o jantar. Pude perceber algum tom de sarcasmo por parte do Negro Totonho ao comentar sobre o sono que já sentia. Os outros três ficaram quietos, como eu. Comemos o grude, como batizamos a comida dos peões, e fomos dormir.

Nunca o tinha visto trabalhar com talhadeira, martelo, marreta e punção. Imaginava que fosse um trabalho mágico, por suas estórias. Na realidade cortávamos pedras desde o amanhecer até o pôr-do-sol. Sua habilidade, mais apurada que a dos demais, o colocava no privilégio de fazer os ajustes nas pedras, tornando-as uniformes para sua aplicação posterior. Eu fazia o transporte das pedras, com mais 4 guris da minha faixa etária, do corte bruto para o tablado onde haviam montado uma espécie de oficina para classificá-las e retirar, destas, as pontas mais evidentes e cortantes. Após o terceiro dia de serviço começávamos a ganhar velocidade. Os peões, que faziam a extração no morro, já tinham a agilidade necessária para não desperdiçar força. Sabiam que não adiantava extrair material de lascas menores, pois pouco adiantariam nosso intento, concentravam-se, assim, nas lascas maiores visto que as menores ficariam à disposição para rejuntar as outras durante a construção.

À noite, enquanto eu ia direto para a cama, os mais velhos saíam com as armas para o mato. Era o jeito de conseguirem um jantar decente, já que a comida que ganhávamos do fazendeiro mal dava para saciar a nossa fome, após o trabalho duro na pedreira. Além do mais, era a única forma de divertimento disponível. Infelizmente, a caça tinha que ser repartida entre todos os peões e pouco sobrava para mim. Por ser o menor, tinha 12 anos apenas, achavam que eu não precisava de tanto alimento como os demais. Acordava todas as noites com a barriga roncando. Era a fome apertando mais a cada noite, como nunca havia sentido. Reclamar, sabia que de nada adiantaria. Permanecia quieto, enquanto o estômago reclamava, ansiava por alimento.

No quarto dia, não agüentei. O Sol foi ficando tão forte que por volta das onze da manhã tive que me retirar do trabalho. Vomitei o café da manhã e amoleceram-se as pernas. Logo ele veio até mim. Viu que eu estava mal mesmo e fez um sinal para que me retirasse até uma sombra, junto a uma figueira centenária. Fiquei por ali, sozinho. O Negro Totonho me trouxe o almoço.

– Come sem olhar, guri. Tive que colocar mais água para transformar numa canja. Pena que faltou galinha – ele riu e eu o acompanhei com um tímido sorriso.

Após comer um pouco, rejeitei o prato. Meu estômago estava revoltado, parecia que reclamava e, por não ter o que desejava, negava-se a aceitar o que podíamos usufruir naquele momento. O Totonho, mandou-me ficar por ali mesmo. Que nem tentasse voltar ao trabalho durante a tarde porque ele já tinha visto casos como o meu e se insistisse em teimosias poderia ficar pior. O melhor a fazer era ficar deitado em lugar arejado. Ele não soube me dizer o que era, mas insistiu para que não desafiasse seus anos de vida, mostrando as rugas no rosto.

– Pegaste uma aragem, guri. Te senta aí no pé da figueira e aproveita para descansar. Tenho visto que andas meio triste, meio fracote. Logo tu, que sempre foste um guri arteiro, rápido e esperto. Talvez teu pai tenha se precipitado ao te trazer…

– Não – interrompi, imediatamente – ele sabe o que faz. Precisava de mais um e já sou bastante grande para me cuidar e trabalhar junto com os outros.

O amigo retirou-se em seguida. Quieto e sereno como chegara. Eu acabei adormecendo logo. Quando acordei estava molhado de suor, mesmo parado e à sombra. Olhei para os outros e continuavam o trabalho na pedreira. Pensei em me levantar, mas o sono me arrebatou novamente. Adormeci lentamente, sem o querer fazê-lo.

A fome voltara a me incomodar e acordei novamente. O suor já não mais fazia parte, meu corpo já estava se recuperando. Pela posição solar, já devia passar das 5 da tarde e ainda teria que esperar até próximo das oito para comer alguma coisa. A fraqueza era tanta que nem me mexia para que não tivesse que voltar ao serviço que se desenvolvia há uns 500 metros de onde estava. A ansiedade por comer algo era tamanha que pensei em ir até a fazenda e roubar uma galinha ou um charque. Mas como iria preparar a comida? Melhor esquecer isso. Foi quando percebi, por entre o pasto, um lagarto. Parado no Sol, esquentando o corpo, o réptil me ignorava e fixava sua atenção nos arbustos logo a sua frente. Fiquei acompanhando, por alguns minutos, sua atitude decidida. Em seguida, cantou uma galinha e saiu do arbusto disparando seu alto cacarejar. O lagarto esgueirou-se até o arbusto. Ergui-me, já imaginava o que o levara até lá, e dirigi-me até o local. Encontrei-o furando um ovo, na parte mais bicuda. Já tinha trincado a casca. Corri, com forças sabe-se lá de onde, para pegar uma pedra e afugentar o animal. Assim o fiz. Logo estava eu terminando o que aquele réptil havia começado.

Voltei para minha sombra junto à figueira. Ali cochilei até o entardecer. Quando os demais passaram de volta à fazenda, ele veio até mim oferecer apoio. Levantei-me.

– Acho que já estou melhor. Posso acompanhar normalmente. Amanhã já estarei pronto para continuar o serviço.

Ele pareceu duvidar, mas sinalizou para que fosse na frente. Nos dias que se seguiram, confirmei minha promessa. À prática que adquirira juntei à energia que conseguia dos ovos consumidos e fazia meu serviço render mais do que o dos outros da minha idade. Os comentários sobre mim cessaram e recuperei, em dois dias, o respeito que havia perdido durante aquele mal estar temporário. Mais um entardecer já cedia seu espaço ao anoitecer, um intervalo tão tênue. Sabia que esse era o momento certo para visitar o galinheiro, atrás dos galpões da fazenda. Visitava-o todos os dias, duas ou três vezes.

Tive que me retirar do grupo para rir quando, ao fim daquela semana, o capataz veio comentar conosco sobre um lagarto que rondava a fazenda. Os cachorros não alardeavam sua presença; nem as galinhas estabanavam-se como de costume. Mesmo assim, todos os dias a doméstica da casa grande achava ovos comidos por lagarto no galinheiro. Comentou, por fim:

– No comprendo, como hace…

Naquela tarde, com um mês de trabalho, já estávamos prontos para iniciar a erguer as paredes de pedra. A ansiedade por essa novidade era a motivação que buscava nos dias de mesmice total. Enquanto a maior parte dos peões continuaria retirando as pedras, nós, los brasilenhos como chamavam, começaríamos a construção propriamente dita. Com o capataz acompanhando as marcações, meu pai demarcou a área da primeira parede. O restante de nós trazia o material para o início da obra. No dia seguinte teríamos apenas a parede com que nos preocupar, acabara a sessão de corte e carga de pedras, pelo menos enquanto os peões conseguissem suprir a obra da quantidade de matéria prima de que precisássemos. Pelos comentários de Totonho com meu pai, os dois mais experientes do grupo, os cortadores estavam aptos a terminarem o serviço sem a supervisão deles. Joaquim e Pedro Paulo, filhos do Nezinho que não pode vir por causa do reumatismo, estavam na terceira empreitada e já contavam com certa destreza na construção. De novato mesmo, somente eu. Como aprendiz, vinha me saindo bem. Não refugara o serviço pesado do corte e da carga, na pedreira. Não haveria de fazê-lo agora que seria a parte mais técnica da atividade. A força bruta cederia espaço à especialização.

Naquele anoitecer, como de costume, rumei até o galinheiro. Rondei por alguns instantes a procura de algum alimento mais fresco, por assim dizer. Encontrei um bem quentinho e ao terminar o serviço percebi o capataz parado à porta, com um sorriso nos lábios. Resmungou algo em castelhano – que não entendi – e me pegou pelo braço, arrastando-me por entre penas e merda de galinha. Implorei para que me deixasse explicar, mas somente balançava a cabeça e a espingarda que tinha na outra mão. Não sabia o porquê, mas as lágrimas escorriam de meus olhos enquanto tentava, em vão, me desvencilhar do aperto no braço. Não sabia o que pretendia fazer comigo, então gritei o mais alto que pude. Ao perceber que paramos, abri os olhos e vi o galpão, onde dormíamos. Meu pai e os outros saíam correndo de dentro após ouvir meu grito. Ele tomou a frente e falou em tom firme e sereno ao capataz:

– Solta o guri. Ele tem fome, fome como todos aqui. Como ainda não pode caçar animais no mato para comer, prefere catar os ovos das galinhas.

– Mas então sabias?

– É claro que sabia. Se ele não tivesse encontrado esse caminho sozinho, eu mesmo o apontaria como única maneira de conseguir energia para o trabalho duro. Ou esqueces que também fui guri trabalhando com meu pai nas construções cá nestas bandas?

– Sí, claro. Mas vou ter que descontar os ovos do pagamento de usted.

Temendo o pior, tentei falar algo, mas as palavras não saíam da minha boca aberta, escancarada. Meus olhos pareciam querer saltar da órbita. Os peões, notando a gravidade do acontecimento, aproximaram-se do meu pai. O capataz sentiu-se sozinho na questão, mas não titubeou. Largou-me e deu um passo atrás, me colocando entre ele e o grupo. A arma, calibre 32 com dois canos, estava embuchada, cheia, carregada, pronta, enfim, para fazer valer a sua demanda pelo menos duas vezes. Naquele momento fiquei parado, sem saber o que fazer. O Negro Totonho interveio, temendo o pior. Ergueu as mãos, chegou ao ouvido de meu pai e balbuciou algo para ele. Meu pai fez um sinal de consentimento e Totonho retirou-se. Imediatamente o capataz perguntou:

– Onde vás homem?

– Vou buscar o dinheiro que te devemos pelos ovos, só isso – respondeu Totonho, dando as costas ao capataz e entrando no galpão.

O clima abafado do verão sulista, fazia ferver ainda mais o ambiente. Ameacei levantar-me, mas meu pai ordenou que ficasse parado, onde estava. Obedeci. Uma questão tão fácil, afinal bastava esperar o Totonho vir com o dinheiro para resolver pacificamente o acontecimento. E amanhã teríamos mais um dia duro de trabalho. Meu pai, ainda encarando o capataz, falou-lhe com a voz firme e forte, que possuía, com um tom grave, porém, que jamais o tinha visto utilizar:

– Baixa essa arma, homem. Estamos todos envoltos em muito serviço, longe de nossas mulheres e de mulher alguma. Deve ser por isso que chegamos a esse problema. Deixa que teu patrão doe uns ovos para nós. Não vai lhe fazer falta e ajudará no bom trabalho que faremos nas mangueiras e currais de pedra.

– No. Respondeu secamente o capataz. – Onde está o negro? Perguntou em seguida. Meu pai não respondeu. Fez apenas um sinal de que o aguardava.

A escuridão começava a ganhar corpo, tanto quanto os ânimos. O capataz já deixava demonstração que sentia a forte pressão exercida pela presença dele a sua frente, imóvel e impassível. Era como se meu pai estivesse a frente de uma cobra. Uma vez, vi minha avó paralisada no pátio de casa. Quando corri, gritando em sua direção, ela mandou que ficasse parado onde estava. Não entendi no momento, mas ao falar comigo ela titubeou o suficiente para ser atacada pela cobra que estava a sua frente e eu não notara. Por sorte era uma parilheira, uma comedora de pintos. A mordida inchou, mas logo o veneno foi sendo eliminado pelo seu organismo que é bem mais forte que o de um pinto ou rato – os alimentos preferidos da parilheira. Minha avó, naquela ocasião, esperava a intervenção de meu pai, que estava para chegar, pois estávamos perto do meio-dia. Com medo de que a cobra me picassse, sacrificou-se. A situação parecia semelhante. Meu pai aguardava, pacientemente, a vinda de Totonho. E ele veio.

No tempo que ficou fora, Totonho deu a volta no galpão e na casa grande. Apesar de sua idade avançada, o negro era muito ágil mesmo. Meu pai disse-me uma vez que ele tinha lutado nas guerras, quando ainda era piá. Mas não precisou retirar-se para o Uruguai, pois passou por guri quando os maragatos foram derrotados. Colocado estrategicamente atrás do capataz, ele soltou os cavalos dos peões, que trazia consigo, em disparada por cima deste. Eram 4 animais, os melhores e mais fortes. Ao ver a trovoada de patas, o capataz pensou em salvar a vida primeiro e virou-se para os animais. Tinha tempo de desviar-se, mas ao invés disso mirou entre eles e disparou. Em seguida os cavalos o atropelaram, derrubando-o por cima de mim, o que evitou que eu fosse pisoteado também. O corre-corre que se seguiu, ninguém entendeu. Alguns foram atrás dos animais, que estavam amarrados pelo pescoço e, soube mais tarde, foram impulsionados pelo palheiro do negro na anca do maior deles.

Assim que me desvencilhei do capataz, que parecia desmaiado, procurei meu pai ao redor. Não o encontrando, fui ao encontro de Totonho. Vislumbrei meu pai ao seu lado. Foi o primeiro a chegar até o negro velho que estava baleado. Vi o sangue escorrendo pelo seu braço e a camisa com várias pequenas manchas. Pelo pouco que conhecia de armas de caça, deduzi que o tiro era com chumbo e que acertara Totonho no lado direito, entre o braço e as costelas. Por sorte, o alvo foi mais incisivo no braço. Mesmo assim, os outros peões me retiraram dali. Ao sentar à soleira, na porta do galpão, comecei a chorar. Não conseguia segurar ou saber por que chorava. Ninguém foi socorrer o capataz. Ao levantar a cabeça, procurando-o na escuridão que se instalava definitivamente sobre nós, o vi mexer-se. Erguer-se. Pegar sua espingarda e dirigir-se ao grupo que cuidava do negro Totonho. O medo me paralisou, ao vê-lo cambaleando. Devia estar com uma perna quebrada, pisoteada por um dos cavalos decerto.

– Morre negro!

Foi a última voz humana que ouvi naquele dia. A espingarda disparou a queima-roupa, e as adagas cruzaram o ar, fazendo o sangue jorrar do já estropiado capataz. A selvageria que aconteceu, passou diante de meus olhos como um sonho. Algo que assistia imóvel, como se nada pudesse ou não quisesse fazer. No brilho da lua nas armas de prata, pude ver meu pai cortando a jugular do moribundo e guiando todos rumo a casa grande. Instantes depois, ouvi mais tiros, gritos das mulheres e dos outros dois peões da estância, que trabalhavam com o gado e moravam na casa grande, durante a ausência dos patrões. A quebradeira de louças e pratarias entremeadas pela gritaria dos moradores da casa povoou os instantes seguintes. Fiquei absorto. Totalmente inerte a tudo que acontecia.

Não sei quanto tempo se passou. Fiquei com os olhos abertos, sem chorar ou piscar por horas, talvez. Ainda ecoava em minha cabeça a gritaria proveniente da sede da estância misturada às visões de morte que acompanhara há poucos instantes. Senti meu pai me pegando pela cintura e erguendo-me sobre o cavalo já encilhado. Notando minhas condições, amarrou minhas pernas aos estribos e tomou as rédeas de meu cavalo a cabresto. Percebi que minha cela estava mais a frente que de costume e logo em seguida nossas maletas estavam atrás de mim, na anca do cavalo, lotadas de materiais pesados e barulhentos. O tilintar que meu cavalo emitia ao andar, balançando as maletas, foram me despertando daquele pesadelo e me mostrou que partíamos rumo Norte, pela posição da Lua que nos acompanhava à direita da cavalgada. Pensei em pedir por Totonho, seu nome não saía de minha cabeça. O transe me dominou, novamente. Era melhor continuar sonhando.

O Sol castigou meu olhar, ao surgir por entre a serra que subíamos. O passo apressado dos cavalos me instigou a perguntar o porquê da pressa. Ignorava, até o momento, a gravidade da situação. Felizmente, apenas Joaquim que seguia logo a minha frente cabresteando meu cavalo ouviu. Ficou ao meu lado e deu-me as rédeas às mãos. Fez um sinal de silêncio, com o dedo em riste sobre a boca. Em seguida, retirou um pão de um saco que levava nas suas costas e me mandou comer. Meu pai seguia a nossa frente, puxando um cavalo com maletas e um corpo. Sabia eu que era meu amigo velho, o Totonho. Atrás deles seguíamos Pedro Paulo, Joaquim e eu. Nosso destino estava definido, bastava desamarrar os pés dos estribos para ter domínio completo sobre minha montaria. Era só o que podia fazer, no momento, além de cuidar bem da retaguarda a cada serro que subíamos, verificando se não existia nenhuma patrulha uruguaia em nosso encalço.

Fomos primeiro para nossa casa. Fiquei, juntamente com as maletas que carregava. Meu pai e os outros seguiram com o corpo, que já emitia um odor forte, para entregá-lo à esposa e sepultá-lo. Queria pedir para ir junto, acompanhar o cortejo e prestar a última homenagem ao amigo. Cheguei a balbuciar, mas não ouvi o convite ficando intimidado e me colocando a descarregar o cavalo. As maletas cheias de pratarias, deram algum trabalho. Minha mãe ficou vidrada, de olhos arregalados e, praticamente, esqueceu-se da morte que cavalgou por nosso pátio momentos antes. Acomodou tudo que pode e deixou o resto num baú dentro do quarto de casal. Eu fui para o galpão, onde os cachorros me recepcionaram, na tarde que já ia se tornando noite. Me deitei no chão batido do galpão, dormi ali mesmo. Meu pai me acordou, ao chegar de volta. Já era alta madrugada e fez questão de mostrar-me todas as marcas que as pulgas tinham deixado em mim. Nem sentia nada, mas mesmo assim ele me apontou a sanga que passava ao lado de nossa casa. Atirei as roupas num canto, peguei um pedaço de sabão e corri nu pelo campo até mergulhar nas águas geladas do córrego. O tempo estava fechado, não haviam estrelas no céu. A possibilidade de chuva no dia seguinte era iminente, pelo abafamento do dia anterior e da noite.

Nos dias que se seguiram tivemos chuva torrencial, com alguns intervalos de sol forte. Eu só queria dormir e minha mãe já estava preocupada comigo. Levantava apenas para comer e logo me recolhia à cama, para dormir. No primeiro dia com tempo bom, fui para a cidade com meu pai. Pegamos o ônibus e nos dirigimos até meu tio, onde fiquei, para que ele tratasse da venda do material que trouxemos do Uruguai. Trocamos poucas palavras pelo caminho, somente o tempo ocupou nosso vocabulário pouco expressivo. Quando voltou me disse para ficar uns dias e tentar esquecer de tudo. Quando estivesse bem, que mandasse um recado por algum vizinho que viesse à cidade. Seria fácil, já que meu tio era dono da única venda da cidade, qualquer pessoa que precisasse passaria por ali. Os dias se passaram e meu tio me matriculou no colégio da cidade. "Preciso de um ajudante para a venda", dizia ele. Eu me resignei a perguntar o que meu pai e minha mãe achavam da idéia e ele disse que concordavam, desde que eu continuasse a estudar. O tempo correu depressa e a adaptação aos acontecimentos de cidade foram acontecendo naturalmente. As visitas à zona rural foram ficando escassas quanto mais estudava e ganhava escolaridade.

Hoje, ao ter esta alça entre meus dedos, percebo que, também eu, me tornei mestre na arte que dominavas.


*Fundador do site www.vetado.net, casado, 30 anos, uma filha, estudante de Engenharia Elétrica, colaborador da Brasil Telecom e uma mente aberta às novidades.

Mauro Rodrigues

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