Simplicíssimo

Cemitério de vassouras

– Não se aborreça. – Disse uma voz em sua cabeça. Ela então sentiu a pressão nos tímpanos e abriu a boca discretamente para tentar despressurizá-los. Não adiantava, a Trompa de Eustáquio tinha entupido e o ar não passava da boca para os ouvidos. Parecia estar dentro de um aquário. Cada passo, Tûm! Por dentro, o mundo reverberava como se ela fosse constituída de água e pele e Tûm!
Vento frio do cacete aquele que lixava o rosto de Ana Maria. O terraço aberto do prédio baixo era violado por olhos, plantados nas janelas dos prédios executivos. Olhos por todos os lados, só não ao norte onde podia-se ver, no dorso nú, as vértebras milenares da Serra do Mar. Dos lados, emoldurada por paredes espelhadas. Acima, delineada por um céu com algo eternamente indefinível em seu humor. Não era possível saber com certeza onde o sol estava, apenas que estava escondido sob um edredom de nuvens. Bocejante, enviava uma anêmica claridade só pra lembrar que ainda existia. Raios de sol resfriados.
Ana Maria estava em uma vitrine trash fincada no coração político da capital parananese. O terraço imundo era um corpo estranho entre arrogantes espigões de aço. Um cemitério de vassouras que jaziam por todos os lados. Suas cabeças separadas dos corpos, troncos quebrados ao meio. Esquecidas, apodrecidas, somadas aos musgos que habitavam a superfície do terraço, desprezadas em sua sujeira moribunda, rejeitadas por rostos incomodados. Rostos de pessoas que forjam jardinzinhos para fingir que seu mundo é agradável. Mas as vassouras são losers, derrotadas pela sujeira imortal, inextingüível. Suas investidas, outrora vigorosas, não são bem-vindas na lembrança de ninguém. Agora elas estão abandonadas ao tempo pelo pecado da velhice. Ana Maria tinha grande respeito por aquelas entidades cristalizadas espalhadas pelo chão, como estátuas de lava em Sodoma, santificadas por sua descartabilidade pop.


Pegou a cadeira de sol remendada e abriu um clássico qualquer. O velho marcador de páginas, uma falsificação grosseira de um hieróglifo profano, guardava a página vinte e dois. Ao lado da sua cadeira ela pintou em grandes letras brancas no piso preto de fuligem:

– Estão olhando o quê, seus filhos da puta? Deixem-nos em paz!

Edemar Gregorio

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