Simplicíssimo

LIMPEZA URBANA #1

Na fria madrugada, garis passeiam dependurados nos camburões, recolhendo lixo, destroços do dia.
Mal reparam no oceano de indigentes que dormita nas calçadas, utilizando-se dos mesmos sacolões pretos e imundos por travesseiros. Crianças usadas como degetos. Uma mãe dá de mamar a um pequeno moribundo: tudo que lhe resta está nas tetas. De repente, um grito apavorante e um freio. O motorista do camburão para e desce abusado. O desespero de um menino seminu lhe tira do sério. Ele urra para que o moço não leve aquele sacolão preto: dentro estava sua "feirinha" apurada no lixão… O motorista dá-lhe um tabefe e manda ele correr para longe. O pequeno sume na neblina feito um fantasma. Provavelmente ainda apanhará muito da vida até que cresça ou o lixo que apura diariamente cresça nele feito ninho de vermes. Será isso o que nos tornamos? Vermes? Onde a razão para nos tratarmos dessa monta? Onde o poder público? Onde a sociedade? Onde estamos todos quando essa cena se transforma em detalhe noturno do cotidiano? Onde nos tornamos imorais ao ponto de negarmos até lixo às crianças? Perdemos-nos de vez? Onde o siso? Vergonha? Penso nisso e perco o sono. Perco também, bem triste, o resto da capacidade de sonhar com a redenção humana.

Lilly Falcão

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