…ou: O dia em que o alazão passou Grecin 2000 no pêlo.
O autor da partícula acima é o filósofo Olavo de Carvalho. O homem entende de danos morais, já que seu sagaz “O Imbecil Coletivo” (1996) provocou alvoroços judiciários entre a intelectualidade brasileira, mais especialmente entre aqueles cujas produções intelectuais eram alvo de suas críticas implacáveis. Uma das alegações mais frequentes na época girou em torno do uso supostamente ofensivo do termo “imbecil”.
O Sr. Carvalho define o “imbecil coletivo” como uma coleção de pessoas de nível intelectual mediano, ou até superior, reunidas com a finalidade de imbecilizar-se. Infelizmente, apesar da definição claramente abstrata, os intelectuais em questão tomaram o “imbecil” como dirigido a suas pessoas físicas. O estranho e irônico desse dolorimento individual é que, ao fim das contas, ameaçaram mover contra o Sr. Carvalho uma ação coletiva por danos morais, ou seja, coletivizaram-se espontaneamente, como que numa confirmação involuntária do fenômeno-título do livro supracitado. O alvoroço não passou dos jornais de então, e nem poderia ir muito além mesmo.
O próprio Sr. Carvalho certa vez moveu – e perdeu – um processo contra a extinta revista “Bundas”, por haver sido acusado infundadamente de “racista”, isto sim uma ofensa à honra, já que racismo é um crime grave, que consta no código penal. Contrariando a lógica, mas confirmando que não é tão facil assim condenar alguém por danos morais, o processo não deu em nada, e o próprio filósofo teve que dar o braço a torcer e elogiar a coragem dos editores da revista “Bundas”, capazes de ostentar no título da mesma o nome de seus órgãos pensantes.
Não que dê em nada toda a acusação desse tipo. Lembro-me da condenação do sociólogo Emir Sader, que acusou o senador Jorge Bornhausen de racismo pelo simples fato de este ter feito uso da palavra “raça”, num contexto que nada tinha a ver com racismo. O caso figura num texto de Olavo de Carvalho, que ao mesmo tempo em que dá sua opinião sobre o caso, também dá abundantes exemplos de trocadilhos, acusações e afirmações sarcásticas que dificilmente seriam objeto de processo judicial (e de fato não foram). O título do texto é “Raça de víboras, ou: o Marquês de Sader na prisão” (Diário do Comércio, 6 de novembro de 2006), e dele cito um trecho a modo de exemplo:
"Ninguém deve regozijar-se com a desgraça alheia, mas mostrar ao dr. Emir Sader que ele não está acima das leis era uma questão de saneamento básico. Apenas não concordo com a Justiça catarinense ao desprovê-lo de suas funções oficiais na USP. Onde mais haveria lugar para um tipo como ele? Nas ruas, ele espalhará a mentira e a loucura entre a população. Na cadeia, corromperá os presidiários. Só na Cidade Universitária do Butantã é que ele pode estar entre seus iguais ou piores, sem chance de fazer o mal a quem não o mereça. Prova disso é a solidariedade que seus pares acabam de lhe hipotecar em mais um “Manifesto de Intelectuais”, o único gênero em que a produção literária nacional tem alcançado algum destaque no mundo."
E por falar em produção literária nacional, todo esse parlatório acima é só para introduzir (no bom sentido da coisa) algumas considerações sobre o embate tribunalístico movido por a escritora Leticia Wierzchowski (haja Ctrl C, Ctrl V) contra o jornalista-blogueiro Milton Ribeiro (fiquei sabendo do rolo no RR). A minha ideia é simples: demonstrar que as ofensas imaginariamente dirigidas pelo Sr. Ribeiro à escritora, e que estão sendo objeto de uma ação por danos morais, são muito menos que nada.
Se intelectuais infinitamente mais gabaritados que a Sra. Wierzchowski – embora alcançar tal nível de erudição não chegue a ser nenhum "tour de force" acadêmico – enfrentam a dor de pesadíssimas críticas com manifestações que jamais logram adentrar as portas dos tribunais, não entendo como as delicadas críticas do Sr. Ribeiro aos erros técnicos primários da escritora possam ter tido tamanha honra.
O caso foi o seguinte: o Sr. Milton Ribeiro criticou dois produtos da musa da escritora Leticia Wierzchowski – 1. o celebérrimo libro “La Casa de las Siete Murreres”, ou, em portuguez, “A Caza de as Sete Mulieres”; 2. a crônica “Do poder da literatura”, ou, em alemão castiço, “Das Machte der Literatur” (nota: o meu português e meu espanhol saíram com extensas falhas que são devidas ao novo akordo orthográphico, ao qual a muito custo tenho temptado me adaptar; quanto ao alemão, dá licença, tá, eu nunca tuve siquer una aula).
O passo básico seguinte para entender o caso é que a Sra. Wierzchowski não gostou da crítica e, ato contínuo, moveu uma “ação por danos morais” contra o Sr. Ribeiro. Entende a autora da ação que no texto do jornalista havia elementos ofensivos a sua honra, “ofensas morais deliberadas, verdadeiros deboches sobre a cultura e inteligência” da mesma. A crítica de Milton Ribeiro, todos podem ler em seu blog.
O auge da barbárie, segundo a acusação, é o uso da corruptela “Vierschoschoten”, ao invés do sobrenome correto da literata. Eu discordo: o ponto alto foi a denúncia do mal uso da palavra “alazão” pela escritora. Alazão é uma cor ruiva ou avermelhada, mas a escritora fala-nos sobre arrebatadores cavalos “alazães negros” em “A Casa das Sete Mulheres”. Das duas, uma: ou a escritora errou grosseiramente no emprego da expressão, ou teve o incontestável mérito de descobrir que, nos tempos de Giuseppe Garibaldi, os alazães faziam tratamento capilar com Grecin 2000.
No blog do jornalista também se encontra uma cópia dos autos do processo, na qual constam as alegações da acusação, e elas são o ponto interessante que destaco a seguir, divididas em itens numerados para facilitar o meu entendimento e, se Deus assim o quiser, do eventual leitor também. Após cada alegação, seguem meus circunspectos comentários analíticos:
1.Acusação: O texto de Milton veicula uma série de agressões à escritora. A utilização de expressões tais como “fazer de conta que sabe alguma coisa de espanhol”, “Mas ela voltou à carga”, “diz toda pimpona que leu — e adorou! — um livro de Orhan Pamuk” e “leu o livro em espanhol e não deu-se conta de que titulo deveria ser La maleta de mi padre” revelam a intenção ofensiva do Réu.
a) Comentário: todas as expressões citadas são descritivas de atitudes da escritora, com a exceção de algumas adições do Milton; a mera descrição de comportamentos notórios observados em alguém não configura uma agressão. Sobre as adições:
a.1 “fazer de conta que” é no máximo um erro de interpretação. Duas coisas são fatos óbvios deduzidos da leitura das obras de Leticia: 1. a escritora não domina sequer os rudimentos da língua espanhola; 2. a escritora escreve seus textos como se dominasse esses mesmos rudimentos. Como se explica isso? Não sendo verdadeira a interpretação de Milton, resta a hipótese de que a escritora acredita dominar rudimentos de espanhol, muito embora esteja redondamente enganada. Considero esta última hipótese mais honrosa. Entretanto o “faz-de-conta” é um legítimo direito de qualquer ficcionista, mesmo em se tratando das capacidades técnicas do mesmo, e apontá-lo não pode senão trazer louros auspiciosos ao literato, ainda mais que a escritora em pauta produz também belos livros infantis.
a.2 “voltou à carga”: retomar determinado assunto com o vigor irresistível de uma carga de cavalaria, mesmo que sejam alazães negros, não é um demérito, mas a demonstração cabal da potência viva do escritor. O Sr. Ribeiro, mesmo que quisesse muito agredir a literata, decerto não estaria no caminho certo. Uma lida nos parágrafos de abertura desta resenha informativa, em particular na citação de “Raça de víboras, ou: o Marquês de Sader na prisão”, poderá orientar as partes sobre a única maneira elegante de se agredir alguém por escrito.
a.3 “toda pimpona”: ser vaidosa, jactanciosa, garrida, alegre, por ter lido um grande livro não é nenhum defeito moral, e é preciso um exercício de imaginação fenomenal – na verdade uma imaginação tão fenomenal que mereceria um estudo fenomenológico – para ver na mera indicação do fato uma agressão.
a.4 “leu o livro em espanhol e não deu-se conta de que [o] titulo deveria ser La maleta de mi padre”: desde quando apontar um lapso denota uma “intenção ofensiva”? Fosse assim e Sigmund Freud, ao lançar a “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, tornar-se-ia o escritor mais ofensivo da História Universal.
2. Acusação: Em realidade, se tratam de ofensas morais deliberadas, verdadeiros deboches sobre a cultura e inteligência da Requerente, tendo como único intuito levar ao público leitor do Blog (e usuários da internet) aquelas expressões pejorativas.
a) Comentário: O réu afirma: “debochei de frases escritas no livro e na crônica. Sobre a cultura e inteligência da Requerente, não percebi nada”. OK. Eu acrescentaria que, mesmo no caso de a acusação estar certa nesse ponto, vale a epígrafe deste informativo: “Assinalo a V. Sa. que, pelo Direito Penal brasileiro, simples menções à má qualidade intelectual de um cidadão não constituem ofensa à honra.”
3. Acusação: Se dúvida houvesse quanto a intenção ofensiva do Requerido (…) esta se dissiparia de forma inequivoca quando se foca a reiterada utilização da palavra “Vierschoschoten” como corruptela do sobrenome da Demandante. Há pelo menos dois claríssimos preconceitos do Requerido explícitos na utilização (múltipla repita-se) do termo “Vierschoschoten”. 1. o menoscabo que o escritor nutre em relação às mulheres, notadamente às escritoras. Tal se evidencia pela chula alusão contida ao órgão sexual feminino feita deliberada e repetidamente pelo Réu. 2. diz respeito à ascendência polonesa da Autora, a qual tambem mereceu uma piada de mau gosto de parte do Requerido. Veja-se que o Requerido, em um texto de quatro parágrafos, utilizou quatro vezes o termo “Vierschoschoten”, relativamente à Requerente.
a) Comentário: Milton nos informa que “Vier significa quatro (4) em alemão”. Alega também uma certa relação especial, ao menos dentro do texto, com o número quatro. Assim, Milton nos informa de um caráter mais profundo emprestado ao termo “Vierschoschoten”. Primeiro, executou uma difícil transdução do original polonês para um sobrenome alemão inventado. Segundo, o que é mais difícil, apôs ao “Vier” um vocábulo latino estranhamente germanizado, querendo referir-se à vulva. Ao fim, compreendemos que pensava o jornalista semanticamente em quatro vulvas, o que reunido em um único ser humano é evidentemente irreal. Conclui-se daí que os quatro introitos do castelo do amor, reunidos em um único nome germânico formam uma entidade simbólica – talvez os quatro pilares de sustentação do Valhalla, ou mesmo quatro poderosas valquírias a executar os desígnios tonitruantes de um majestoso Wotan literário. Disso decorre que:
a.1 os “dois claríssimos preconceitos” semelham obscuras acusações sem fundamentação sólida.
a.1.1 Misoginia: o suposto menoscabo pelas mulheres, afinal, poderia ser na verdade um elogio e uma exaltação positiva à natureza feminina, ainda que, estilisticamente, o gosto da caneta-tinteiro do Sr. Ribeiro seja questionável.
a.1.2 Racismo: não há como inferir-se consistentemente nada do texto do Sr. Ribeiro, com relação ao povo polonês, até porque todas as suas atenções estavam voltadas para a língua alemã, e o curioso hábito germânico de compor sobrenomes. Em Os Mestres Cantores de Nürnberg, Sixtus Beckmesser debocha do sobrenome de Kunz Vogelgesang, sem no entanto ensejar ação civil contra si.
Nota: O racismo é um crime tipificado pelo Código Penal, e a acusação de racismo sem provas constitui, como direi, hmm, ofensa à honra e um dano moral notório.
4. Acusação: Qual o sentido disto se não grave intenção injuriosa e ofensiva do Réu frente à Autora? Na hipótese sob exame, claramente o texto de autoria do Requerido viola o direito à honra da Autora, constitucionalmente protegido, na forma dos dispositivos supra transcritos. O que se deprende dos fatos não é somente a falta de ética, mas o dano que essa postura ofensiva causou e vem causando a imagem pública da Demandante. (…) duas infrações à lei cometidas pelo Requerido: ofensa à imagem da Requerente, consiste na manipulação deliberada do nome da Autora, e ofensa à honra, pela veiculação de outras expressões ofensivas com o intuito de atingir moralmente a imagem pública da Autora.
a) Comentário – O “sentido disto” é: uma crítica ao mérito literário da obra da autora, do ponto de vista estritamente técnico, acrescida de chistes de mau gosto que não configuram uma ameaça à honra, à pessoa, à imagem, à moral, ou a qualquer outro aspecto ontológico da autora. Na verdade o texto inteiro do jornalista não ameaça nada, só critica. E ao processar Milton Ribeiro, a escritora Leticia Wierzchowski expõe-se desnecessariamente a algo muito mais perigoso que uma mera corruptela botequinesca: expõe-se ao exame crítico de sua obra por parte do público em geral, que certamente vai desejar, doravante, ter à mão um dicionário de espanhol, um de italiano, um de português, além de um bom livro de História, antes de se arriscar a ler qualquer volume literário seu.
Como bem assinalou o Milton, a escritora em pauta tem quase quarenta anos, o que inegavelmente é uma virtude. Ela já publicou muitos livros cujo mérito dificilmente sobreviverá ao exame do tempo. O que é totalmente incompreensível são os festejos que a grande mídia como um todo prestam a uma comunidade intelectual que não é sequer a sombra dos gigantes que o Brasil outrora produziu e acalentou. Gigantes mulheres e gigantes homens. A própósito, completo este humilde informativo com mais uma citação de Olavo de Carvalho, extraída do texto “Psicose Linguística”.
"Aos 26 anos, Flannery O’Connor já tinha publicado seu espetacular romance, Wise Blood, Rachel de Queiroz o premiado O Quinze e Clarice Lispector o surpreendente Perto do Coração Selvagem. Aos 26 anos, Cecília Meirelles, Bruno Tolentino, Castro Alves, Gonçalves Dias já tinham produzido alguns de seus mais belos poemas. Aos 26 anos, Franz Brentano já havia escrito sua análise magistral de Aristóteles, que até hoje é usada no ensino universitário. Aos 26 anos, Goethe já era o celebrado autor de Os Sofrimentos do Jovem Werther. Aos 26 anos, Arthur Rimbaud já havia parado de escrever e o filósofo Otto Weininger já tinha estourado os miolos."
(e com a idade de Leticia Wierzchovski, Dante já havia completado "A Divina Comédia")…
C.Q.D.
Comente!