Oração

Olha, doutor, meu papo hoje não é com o senhor.
Quero falar direto com o chefe.

Tenho amado meus inimigos
Aturado bêbados e mendigos
Mantido a calma nos piores momentos.
Preservado esse resto disforme de vida
Como um cão que enterra o seu osso
Velho e sujo
Por ser a única coisa que ainda lhe resta.
E como um cão abandonado
Vou levando pontapés de estranhos
Sem ao menos poder revidar

E com a obediência de um cãozinho adestrado,
Tenho me comportado, respeitado as regras.
Com a paciência de quem não tem o que perder,
Luto contra aquilo que não posso vencer
Com a consciência de quem sabe que não adianta desistir,
Vou sobrevivendo, sem dar importância a nada
Apenas esperando o que a vida pode trazer

O que ganho com tudo isso?
Quero minha redenção, já!
Se só terei o paraíso após a minha morte
Leva-me logo, então!
Ou me diz o que tenho de fazer
Mostra qual é a tal missão
Ou acaba de uma vez com isso

O caminho, a verdade, a luz
Deixai-me cair em tentação!
Me faz ser pecador
Para assim merecer essa penitência
Gratuita e antecipada que estou pagando

Alguém me dê uma pista, um rumo
Qualquer doutrina, mandamento, ritual
Qualquer seita, direção, tribunal
Milagre, macumba, oração

Crucifiquem-me! Joguem-me na fornalha!
Ou tragam-me as virgens, ou soltem os cães!
Espanquem meu corpo, arrebentem com meu crânio!
Me dêem de comer com a lavagem dos porcos!
Pois cansei de ficar a esmo catando migalhas na podridão
Levem o pouco que sobrou de mim
Se aproveitem do meu corpo
Me deixem arder em chamas
E me tranquem no porão!
E depois me levem à terra prometida

Qualquer anjo da guarda iniciante,
Me pegue para adoção
Ou um santo transeunte,
Jogue-me sua benção
Ou então o diabo que me carregue
Para onde ele quiser!

(Ao dizer isso, ouviu-se o estrondo de um raio que cortou o céu da cidade em dois pedaços. As luzes se apagaram; Não teve dúvidas: Fechou as cortinas, tropeçou no tênis, encoxou o travesseiro e foi dormir ao som de uma doce chuva que acabara de começar)