Simplicíssimo

Hierarquia

HIERARQUIA

Sábado pela manhã, curso de especialização em História do Brasil.
Os estudantes estão espalhados pela ampla sala, com as cadeiras em uma aconchegante desordem, que não permite sequer um corredor regular para a chegada à frente da turma (a porta de entrada fica ao fundo).
O professor já iniciou a aula há uma hora, mais ou menos, quando uma das presentes, lá do fundo, levanta um problema dos mais paroxítonos:
­­— Será que a turma podia sentar em círculo?
O professor, interrompido em meio a um raciocínio, fica ali olhando, como quem encheu os pulmões para uma fala e as palavras lhe foram subitamente furtadas; com aquela cara de quem foi acordado de supetão, no meio de um sonho denso, arrancado brutalmente das profundezas de seu sono; meio sem entender, desarmado e incrédulo.
— É que assim, todos virados pra frente, fica uma hierarquia e não é. Aqui é uma troca. E eu não consigo! — completa ela.
Todos os presentes, menos ela, ficaram estupefatos, sem reação.
— Bom… — vacilou o orientador — Sei lá. O que vocês acham? Decidam aí vocês…
Por algum tempo ficam ali, todos olhando-se, sem saber o que dizer.
Lá pelas tantas, alguém comenta e toma a iniciativa:
— Se isso vai deixar a colega melhor… — enquanto puxa a cadeira para a parede ao lado.
Tomado pela estupefação, fiquei ali pensando no quão frágil é a noção de liberdade, de modo geral, e como é singelo o entendimento das relações de poder. Ainda, como algumas pessoas deixam-se influenciar e condicionar por qualquer discurso demagogo e pueril, de um lado e de outro dessa relação.
É claro que somos jogados em um turbilhão social e não temos lá muitas chances de escolha, mas a hierarquia também está na forma como cada indivíduo se vê e se coloca diante das relações que se vão estabelecendo em todas as esferas e níveis do convívio diário.
Parece-me que a hierarquia, no caso dessa sala de aula, não estava na disposição das cadeiras, mas na cabeça daquela colega. Sentar-se em círculo não fez ninguém mais ou menos digno, mais ou menos influente ou mais ou menos autoridade. Aliás, nem sei por que se via uma tal autoridade ali. Para mim, meu papel estava bem claro, naquele momento: eu estava ali para ouvir alguém que supostamente tinha um melhor entendimento do que o meu sobre um dado tema e é claro que haveria uma troca (sabe-se que todo bom professor sempre aprende com seus alunos).
É bom deixar claro (antes que eu seja precipitadamente julgado) que não estou defendendo as coisas como são ou estão; muito pelo contrário, trata-se de uma crítica a esse sistema baseado na subjugação, exploração e segregação, que se mantém intacto, atrás das sombras.
Os vínculos autoritários estão por todos os lados, em todos os momentos. São inerentes à essa nossa sociedade burguês-judaico-cristã e começam já no seio familiar, na educação dos filhos. À obediência aos pais (crianças) segue-se à obediência aos grupos (adolescentes) e à obediência ao Estado (adultos). Por menos que percebamos ou queiramos, nossas relações são, na maior parte das vezes, baseadas em jurisdições. É assim que a sociedade funciona e se mantém, lamentavelmente. O problema maior, no entanto, é que quando não temos consciência disso e achamos que é no “alinhamento das cadeiras” que ela se expressa, estamos completamente a seu serviço, somos escravos e sujeitados. Enquanto os peixinhos brigam entre si pelas migalhas, não percebem a presença dos tubarões.
Mas, talvez aquela colega tenha se sentido menos oprimida, com todos rodeando a sala, mesmo que ela tenha que trabalhar cada vez mais para viver cada vez menos, mesmo que ela não tenha qualquer participação na decisão de coisa alguma relevante na vida pública, mesmo que ela “tenha” que gastar quase todo o próprio salário em tinturas para os cabelos e botas que não se repetem em cada sábado, mesmo que ela “tenha” que atender o celular durante as aulas, mesmo que ela ache que o mais importante na formação do futuro cidadão consciente seja a divisão do quadro-negro em três partes antes da escrita, mesmo que ela não tenha opinião própria sobre coisa alguma.
Agora com todos sentados ao redor da sala, os olhares continuavam voltados para uma mesma figura, que continuava de pé ali na frente, direcionando o raciocínio, os trabalhos e definindo os conceitos avaliativos. Se fosse mesmo uma questão de hierarquia, ela ainda estaria presente e impecável.
Mesmo que muitos ali estivessem, agora, sujeitos às dores no pescoço por terem que ficar olhando para o lado durante as três horas seguintes (no meu caso para a esquerda), a fim de acompanhar as transparências no retroprojetor e copiar as anotações feitas no quadro, o mais importante era estarmos em círculo.
Mas poderia ter sido pior. Ela poderia ter implicado com o fato de a sala de aula ter sido definida arbitrariamente e querer que os encontros (sim, mudar o nome da “aula” para “encontro” faz toda a diferença do mundo) acontecessem em locais “neutros”, como nossas casas.
Enquanto isso, a “Capital Ecológica”, a “Capital Social”, a “Cidade da Gente” onde mora essa moça (e eu) foi a capital brasileira em que a pobreza mais aumentou, no país em que cinqüenta milhões de pessoas tentam sobreviver com menos de R$ 80,00 por mês…

Leandro Laube

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