OS DEUSES E O DINHEIRO
No século XVII, René Descartes separou a matéria (corpo) da essência (alma) e lançou as bases do método científico, que é seguido até nossos dias. É claro que o cartesianismo, por si só, não foi ruim, porque a partir desse rompimento com tudo o que era tido como verdade naquele tempo, as ciências desenvolveram-se para o que conhecemos hoje (e você estar aqui, agora, lendo este texto, é fruto dessa ciência).
Contudo, talvez a humanidade tenha levado a distinção cartesiana às últimas conseqüências. O esvaziamento do homem deu-se de forma tão radical, que, mais do que nunca, a angústia do vazio consome a alma.
A humanidade sempre precisou desenvolver seu lado imaterial, sua porção do divino, que (em última instância) servia como fator de estruturação e aglutinação das sociedades. Veja, como exemplo, a Europa após a queda do Império Romano: O que manteve uma certa unidade entre os povos europeus daquele momento foi precisamente a Igreja, única instituição sobrevivente e comum a todos eles.
Mas, o desenvolvimento da burguesia (com seus valores e premissas), aliada à distinção entre o corpo e a alma comprometeram as relações do indivíduo consigo mesmo e com a coletividade, jogando a humanidade em uma guerra desenfreada por mais espaço e por um tal amor não encontrado em meio à individualidade crescente.
Talvez o dinheiro (e o poder que vem com ele) esteja ocupando o espaço deixado pelos deuses. O fato é que estas divindades (tanto o dinheiro quanto as deidades) servem de guia para a humanidade, servindo de foco para as atenções ou como um objetivo a ser conquistado, já que o homem sempre foi colocado, por si próprio, como um personagem secundário (um mero figurante na busca do papel principal em todo o processo de criação e evolução).
Talvez a maior diferença entre tais ídolos, consista em que enquanto os deuses são do coletivo, isto é, os indivíduos juntam-se para, em cerimônias elaboradas pelas tradições, dividiram a atenção divina e ganharem representatividade (e com isso as graças, é claro), o poder monetário é disputado pelo indivíduo, que o pretende todo para si, em uma disputa voraz e insaciável por cada vez mais.
A espiritualidade, representada pelos mitos, colabora para uma transformação de dentro do indivíduo para fora, enquanto ao dinheiro cabe a expectativa de uma mudança em direção oposta. Contudo, como as verdadeiras e mais duradouras transformações acontecem no interior de cada indivíduo e não fora, ou seja, como não se transforma, de fato, nada de fora para dentro, ocorre que a busca pela felicidade desta forma é incessante e angustiante; pois toda vez que é alcançado o objetivo material, percebe-se que este não cumpriu seu papel de antídoto às angústias. Automaticamente, novo objetivo material se impõe, na ânsia de dar cabo do vazio existencial, que nunca é preenchido.
Por outro lado, ambos os objetos de adoração são usados como trampolim no jogo do domínio, pois assim como quem dispõe mais do acúmulo de capital é tanto mais poderoso, também quem dispuser de maior entendimento acerca dos desejos e vontades dos deuses estará mais próximo do comando.
Ou seja, do ponto de vista das escalas de poder, tanto o capital quanto o deus são mantidos e usados em benefício de uma minoria de privilegiados, enquanto o populacho chafurda na lama, esperando o momento de uma redenção que, cá entre nós, nunca vem.
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