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,“hard body training” é uma expressão usada para designar o processo pelo qual, através de repetidas fraturas, os ossos, fragmentados, se reconstituem, originando uma formação mais sólida, forte e resistente. E este renascimento possibilita um sem número de realizações que não seriam possíveis antes, além de deixar o organismo mais preparado para enfrentar novos desafios. É a síntese do desenvolvimento e adaptação, portanto.
A analogia coloca-se perfeita para muito do que já disse, acredito, e, naturalmente, vivi nestes 20 anos. E, para usar uma figura peculiar, lembra-me até Rocky Balboa, numa das principais passagens de seu último filme: “Ninguém ou nada vai te agredir tanto quanto a vida. Mas isto não é sobre o quanto você acerta; mas sobre o quanto você pode suportar e seguir adiante. O quanto você consegue aprender e ir adiante. È assim que se alcança a vitória. E jamais aponte o dedo para ninguém, para isso ou aquilo, tentando justificar o que você é ou o que gostaria de ser, culpando-os. Assuma a responsabilidade. Faça melhor que isso.”
Eu poderia citar Sartre, Hesse ou algum outro para dizer coisa semelhante. A referência à Rocky, no entanto, é providencial. Não só para desmistificar certas coisas – o medo do intelectual em se identificar com a cultura pop, por exemplo – como se fossemos seres constituídos de uma só visão, devendo fidelidade a alguns meios, mas também porque traz características intrínsecas também a mim: o italiano torto, dramático, família, de constantes e explosivas mudanças de humor, origem simples, desacreditado e perseverante. A pieguice inegável presente em Balboa é reflexo do que temos de mais comum, ordinário e humano: não surge à toa nem nos é estranho.
Tenho verdadeiro asco de quem não assume suas posturas, aquilo que fez e que é, sempre buscando subterfúgios esquizofrênicos para justificar-se e jamais admitindo erros e cobranças. O típico “não aceito isso ou aquilo”, “estou muito (alguma coisa) para”, quase sempre, vem de alguém com imensa necessidade de auto-afirmação, inseguro quanto a si próprio e que precisa sempre da atenção e interferência externa para algo.
Nós, apenas nós, somos os responsáveis pelo o que fazemos. Pelas nossas escolhas, o que legitimamos, mudamos, aceitamos, vivemos. Sofremos inúmeras influências, é óbvio, mas precisam da nossa permissão para serem autenticadas. Assumir a condição de fazedor de si mesmo, portanto, é uma simples questão de caráter, maturidade e, aí sim, atuação efetiva em todas as esferas da vida.
Isto era para ser uma crônica. Mas nunca consigo achar o tom certo daquilo que interpreto como uma. Tudo acaba se tornando uma reflexão crítica sobre algo. Pegue mais leve, garoto.Como se conseguisse.
É uma ilusão, contudo, achar que todos que se empenhem, todos que busquem os seus objetivos e determinadas conquistas, irão conseguir alcançá-las. A historinha de que “basta lutar por algo que conseguirá”, “tudo depende de você”, “é capaz de tudo”, e, a minha preferida, “o sistema oferece condições igualitárias de livre desenvolvimento e oportunidades, bastando a perseverança para que se alcance o mérito desejado”, não passam de asquerosas mentiras históricas que visam manter o povo sob cabrestos de interesses bem específicos e necessários à sua perpetuação indefinida. Quando não soam como a mais detestável ladainha da “auto-ajuda”.
É muito fácil para os guardiões do bem estar propagarem tais idéias quando cresceram sob condições extremamente favoráveis, de considerável conforto, facilidades e mordomias. “Pobre só é pobre por que quer”, não é mesmo?
Num mundo erguido sob a indiscriminada exploração dos semelhantes, fundado sob o sangue e o lombo de escravos de toda sorte, onde o desenvolvimento de alguns foi justamente proporcionado sob a desgraça e expropriação indevida alheia, sendo a desigualdade o cerne e a condição intrínseca, sine qua non, imprescindível de sua existência, tudo isso é uma grande piada. Infelizmente, nunca canso de me fascinar em ver o quanto somos ignorantes e o quanto legitimamos padrões de pensamento tão flagrantemente baixos, frágeis e falaciosos.
Pessoalmente, tenho problemas em conviver com quem nunca passou por sérias dificuldades e privações na vida. O “hard body training” citado. O que esta condição traz é simplesmente inacessível a quem nunca a viveu. E, segundo creio e pude observar, tal fator influi em muito, mas muito do que acabamos por nos tornar. No que acreditamos, fazemos, dizemos e buscamos. É o centro de toda minha idiossincrasia. O pressuposto fundamental para Maurício Angelo ser o que é. De modo que sou eternamente grato por ter nascido sob essas condições.
Inúmeros pensadores ressaltaram o quanto as dificuldades e tormentas são partes fundamentais do nosso desenvolvimento. O quanto elas tem a capacidade de nos moldar, impelir e instigar. São, na verdade, o princípio que nos faz crescer, adaptar e evoluir – no sentido mais amplo, não dogmático e não linear possível.
Completar 20 anos tem um sabor estranho. Toda noção de idade e tempo (lembrando que são duas coisas completamente diferentes), aliás, me é suspeita e grotescamente relativa. É inegável que influi e nos afeta, porém. De modo geral, muito mais do que deveria. A capacidade que temos de julgar não só aos outros como a nós mesmos pelo puro e simples número cronológico é impressionante. Escrevi, há três anos atrás, que é sob a idade que se escondem as mais perversas e nefastas justificativas, posturas e crenças. Coitado daquele que precisa recorrer ao seu nascimento para algo. Sinal inequívoco de que não sobrou mais nada para o que apelar.
Não tenho muito do que reclamar. Sou um bem aventurado. Dou um valor imenso a cada mínima coisa que conquistei.
A importância de se conviver com o fel, é que, sem ele, as conquistas não são tão doces e saborosas.
Há dois anos, eu jamais poderia imaginar tudo que me aconteceu. E, agora, cá estou. Cada ano supera o antecessor em intensidade, aprendizado e realizações. Que mais posso querer?
Já perdi a conta de quantas vezes renasci: intelectual, física, sentimental e financeira. Além dos inúmeros acontecimentos que me obrigam a adaptar-me e reconstituir. Acho que isto está tão impregnado em minha vivência, que não conseguiria enfrentar longos períodos de estabilidade e conforto. Tenho forte necessidade de mudança. Minha vida, sempre, foi marcada por elas.
Me acostumei a mudar de cidade, de estado, de casa e de ambiente. De escolas, círculo de amigos, lugares, companheiras, sites, músicas, esportes, meios de sobrevivência. Daquilo que aparentemente poderia seguir seu curso normal, tudo foi quebrado, destruído, despedaçado.
“Broken idols, broken heads/People sleeping in broken beds/Ain't no use jiving/Ain't no use joking/Everything is broken.”
Tudo que era sólido se desmanchou no ar. Sou um homem moderno. Inevitavelmente. E marxista, felino, observador, introspectivo, ácido, sensível, crítico, carinhoso, generoso, canceriano, chato, irônico, contestador, insaciável, exigente, simples, espontâneo, paradoxal e opcionalmente insatisfeito. Alguém que adora ser surpreendido. Que escreve não porque acha que tem algum dom especial, uma capacidade mais elevada ou qualquer bobagem do gênero, mas escreve, primeiro, para si próprio e porque isso o mantém vivo. Diverte, expressa, inquieta, satisfaz.
Entreguei-me ao erro e ao ponderado, ao torpe e ao sóbrio, à violência e à mansidão. Mas, sob tudo, a consciência. E por isso se sofre, se indigna, se revolta, se busca e se constrói.
Não sou fácil de conviver. Exijo muito. 75% descendente de italianos, o resto de portugueses com holandeses. Ou seja: brasileiro. Foca metido a jornalista. Arremedo de escritor pouco empenhado. Apreciador atento, contudo.
Amigos e games desde sempre. Rubem Braga aos 9. Cinema aos 10. Matrix aos 12. Pink Floyd (e metal) aos 13. Rage Against The Machine aos 14. Kubrick aos 15. Oscar Wilde, George Orwell, Aldous Huxley, Hermann Hesse, Joseph Conrad, Fernando Pessoa, Hemingway, Wells, Goethe, Marx e Jean-Jacques Chevallier aos 16/17 – um bom ano aquele. Daí pra frente seria exaustivo citar. Eleve tudo à enésima potência e adicione várias outras cores à paleta. Estamos perto de um auto-retrato.
Como diz o Herzog, de Saul Bellow, que leio atualmente: “Minha vida – não uma longa enfermidade, mas uma longa convalescença. O organismo que aprendeu a prosperar com o veneno. (…) Mas como continuamos encantadores, apesar de tudo.”
Verdade. Como continuamos encantadores. Apesar de todo caos, toda atrocidade, mesquinharia, egoísmo, estupidez, arbitrariedade, miséria e injustiça. De tudo que é bruto e vazio. E de tudo que nos atormenta.
Ainda assim, somos seres dotados de enorme potencial, fascinantes, sensíveis, transformadores, errôneos. Humanos.
Minha paixão? A vida, em sua forma mais plena. E que ela siga seu curso, com as infindas possibilidades e descobrimentos que traz.
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