Simplicíssimo

Da Desgraça Cinematográfica

“Dizem que é a última canção

mas eles não nos conhecem

só será a última canção

se nós deixarmos que seja.”

 

Direto ao ponto: eu adoro filmes que terminam em desgraça. Pois a desgraça, ou o que entendemos por ela, é muito mais verdadeira e palatável que grande parte do resto.  E o resto, no caso, é, óbvio, o “happy end”. Finais felizes! Quem precisa deles? Apenas o sistema, não o público. É a falta de coragem em quebrar com este esquemão que impede “Encontro Marcado”, por exemplo, de ser um bom filme. Em contrapartida, “Clube da Luta” tem como maior virtude justamente este ímpeto, este desejo, este confronto – felizmente as virtudes não se concentram apenas em seu final.

 

A citação do início deste texto é o encerramento de “Dançando no Escuro”, de Lars Von Trier. O dinamarquês, aliás, é um bom parâmetro da desgraça cinematográfica. Nele, o caos é crescente. Nos prova que sempre pode piorar. Parece que cada quadro busca externar a decadência humana. Dito isto, a citação usada parece quase pueril, romântica, bucólica. Bucólica como um tiro no peito. “Dogville” já não deixa brechas para tais esperanças. Um conservador diria que Von Trier evoluiu, amadureceu, contentou-se com o fim da história. E aposto que muitos críticos disseram coisas semelhantes. Penso o contrário. Ele apenas ficou mais obscuro, ainda mais simples, e, paradoxalmente, mais claro. Tire o libelo de resistência, coloque toda a reflexão sob o espectador. Arte é sangue, dor, luta, questionamento, efeverscência. Já disseram que toda arte verdadeira é revolucionária. Relaciona-se com o homem, nasce dele, externa os seus anseios, a sua experiência, seus conflitos. Age justamente como oposição ao resto.

 

Claro que ela pode funcionar também para o conforto, a distração. O problema do establishment é querer que TODA arte seja assim. Transformar a exceção em regra, uma possibilidade na única possibilidade. Males – e imperfeições – da indústria cultural. Por isso o “happy end” é tão inverossímil, asqueroso, clichê. Ele diz que depois de todo sofrimento vem a alegria, após toda confusão o esclarecimento, toda tempestade a bonança, toda guerra a paz. Toda cura para todo mal. É o que apregoa. Não há nada que ele não possa resolver. Hollywood tem as soluções para todos os problemas do mundo. O “happy-end” é uma agressão à nossa inteligência. Uma ofensa a todos os sãos de espírito, a todos os lúcidos, sensatos, renascidos.

 

A desgraça! Esta sim faz sentido. Esta sim eu posso respirar. Esta sim invade meus poros e minha mente, mesmo quando envolto em toda felicidade, toda satisfação. Quando abdico do pensar, quando o mundo não passa de uma brincadeira de mau gosto, quando aquele momento é a única coisa que importa: aí eu sou feliz, completo, realizado. É isto que o “happy-end” sempre proporciona. Há sempre um início, meio e fim. Esperamos, inabalavelmente, a redenção final. O “bem” vence o “mal”. Os personagens são indefectíveis: haverá sempre os redimidos, os sonhadores, “winners and losers”, as lutas por poder, afirmação, estabilidade. Tudo gira em torno disto, pois não podem se permitir ir além. Quando muito, algum “anti-herói” simpático. “Sin City” é o típico blockbuster que tenta se passar por outsider. Um embuste pouco, muito pouco eficaz.

 Os deslocados, nos filmões, só se sentem deslocados por não conseguirem se adaptar ao grupo, a tribo, a massa. E o que buscam é justamente se adaptar, aprender a se adaptar. Eis o objetivo essencial da imensa maioria do cinema contemporâneo. A mensagem, nada subliminar, que defendem. “Adapte-se e tudo sairá bem”. “Questione e apodrecerá na miséria”. De modo que os “filmes desgraça”, ou melhor, aqueles que se fiam na realidade, externam justamente o contrário. Orgulham-se de seu deslocamento. Retratam as suas agruras. Discutem o porquê dele, suas origens, implicações, possibilidades.  

Talvez por apenas ter visto (e revisto) filmes que lidam com a desgraça, com a mudança, a absurdidade, o que realmente deve ser discutido, que estas coisas venham à tona. “Oldboy”, “Amores Expressos”, “O Machão”, “Vanilla Sky”, “De Olhos Bem Fechados”, “Dogville”, “Amadeus”, “21 Gramas”, “O Poderoso Chefão”, “Dançando no Escuro”. Não importa a ordem, a procedência, o orçamento que tiveram. Bom lembrar, todo o patriotismo barato que faz com que enalteçamos filmes nacionais brutalmente medíocres e estúpidos com a inaceitável desculpa de “falta de recursos” cai por terra quando vemos os ícones de reflexão e qualidade que os europeus criam com quase nada no bolso.

 

Rainer Wainer Fassbinder, do qual vi pouco, quase nada, é a exaltação do caos, do desconforto. Não são necessárias muitas palavras para sermos atingidos pelo sofrimento da tela. Basta simbolizar, insinuar…para que reconheçamos a desgraça inerente a todos nós. Não porque somos, mas porque a vivemos. O “happy-end” exige um grande exercício de imaginação, um grande esforço para tornar aquilo factível, só pode ser compreendido sob a falsidade, a alienação, o fantástico em seu significado mais pejorativo. A desgraça não. É direta, bombástica, viva, intrínseca. Kubrick é a estética da ruína. O lado rebuscado, e em suspenso, como também surpreendente, da condição humana. “The Godfather” é cínico. “Vanilla Sky” é a analogia clara, e clássica, da dualidade resignação-ousadia, conforto-coragem, imaginário-verossímil. O mesmo que faz “The Matrix”, só que de modo hi-tech, turbinado, intenso, lidando com inúmeros outros símbolos, conceitos, aplicações. A síntese da passagem dos séculos XX-XXI.

 

Filmes reais são os que suscitam escolhas. Que, não apenas em seu desfecho, mas durante toda a projeção instigam, despertam, chocam, ferem, incomodam, fertilizam a reflexão, levam-nos para dentro dele. Como um dos mecanismos mais poderosos e abrangentes da cultura atual, o cinema sofre, muito mais que outras artes, a influência maciça do establisment: seus mandatários, seus interesses, seus objetivos. Daí a contaminação tão flagrante. Vários cineastas já provaram que é possível realizar grandes obras (em conteúdo, que é o que de fato importa) sem um grande capital, quebraram as amarras do dinheiro. Cabe a nós, como espectadores, valorizar o cinema com sangue, os filmes reais, da desgraça, do questionamento, da resistência. Ou da denominação que preferir. Dar o troco em quem pretende nos enganar. Não deixar que penetrem na gente. Apenas não fuja da responsabilidade: faça a sua escolha.

Maurício Angelo

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