"A medida de uma alma é a dimensão do seu desejo." (Flaubert)
Parte-se de uma premissa. E temos a liberdade de levá-la para onde quisermos. A criação, quando sai do artista, torna-se de domínio público. É uma abertura perigosa. Admite excessos, devaneios. No fundo, admite tudo. O que não quer dizer que todas são adequadas. Esta é a graça da vida. Relações, de que natureza for, nunca se encerram em si mesmas, mas abrem infindas e suculentas possibilidades.
A analogia é perfeita e válida. Quando se passa muito tempo no casulo, nada melhor que a sensação de voar pela primeira vez. O que sai é um novo ser: renascido, belo e vívido. Com algumas cicatrizes, naturalmente. Porém impetuoso, prestes a descobrir e experimentar tudo que desejar.
Não sou santo. Não sou o exemplo do homem perfeito, do cidadão de bem, do cavalheiro encantado presente no imaginário popular: um ser demasiado servil, submisso, fraco, sem personalidade, vivendo para outra pessoa antes de si mesmo. Não sou nem nunca serei. E já não me interesso por quem deseja um. É um péssimo sinal.
Tenho em mim todos os defeitos e muitos, muitos outros. Sou insuportavelmente chato, ranzinza, crítico, mesquinho, instável, bobo. Sou feio, pobre e outsider. Ou seja: a antítese da antítese do desejável. E é maravilhoso sê-lo assim. Já tenho problemas suficientes sendo o que sou. Tentando ser apenas um homem.
De todas as mulheres que atualmente fazem parte da minha vida, seja em que grau ou de que modo for, nenhuma, de fato, me toca. As coisas são diferentes. Sobretudo, é indescritível a sensação de poder relacionar-se com todas elas. Com quem quer que seja.
Vejo um sem número destas que de fato mexem com minha libido cotidianamente. Várias transeuntes, doces desconhecidas, silhuetas atraentes, rostos duma beleza irreparável – no máximo que a imperfeição pode ser. Nutro paixões relâmpago de dez segundos cada. Num curtíssimo espaço de tempo, posso imaginar toda uma vida, toda uma possibilidade ao lado daquela mulher adorável que acabara de lançar olhares esguiamente provocantes – e como elas adoram fazê-lo!
É sempre curioso, e naturalmente estúpido, quando pensamos no que a nossa vida seria se não tivéssemos algo. Se não morasse onde moro, se não tivesse passado naquele lugar naquele instante, ido a aquele show, se não conhecesse aquela pessoa, lido aquele livro, visto determinado filme, se não estivesse solteiro. Impressionante observar como os acontecimentos se desencadeiam, gerando resultados póstumos sequer imagináveis. Eis porque viajar me é tão agradável. Adentra-se num universo onde tudo é novo, e possível.
Minha solteirice, no momento presente, me foi tão fundamental nos últimos meses, trouxe coisas tão positivas e abriu-me (como continua abrindo) experiências fantásticas. Sem ela, estou certo que muito disso não teria acontecido. E não falo somente do carnal, não mesmo.
Há vantagens fabulosas na monogamia. Vantagens intrínsecas. Contudo, não se trata de substituí-la pela poli, mas de não ter compromisso algum. De estar constantemente aberto a tudo. Também não é ser fiel a si mesmo, pois este ser imutável e soberano não existe, mas de viver tendo a liberdade de desfrutá-la.
Amores, paixões, atrações, empatias, sintonias, química, seja lá do que queiram chamar, existem dezenas, de vários tipos diferentes: o que nutro por determinada mulher não é o mesmo que nutro por outra. O que me agrada nesta não é semelhante ao que me atrai na seguinte. O que busco aqui não é igual ao dali. E a imensa maioria delas encerra-se em pequenas virtudes e charmosas peculiaridades. Nada mais. Como abarcar tudo numa só? É possível, sim, porém improvável. Tão difícil quanto saciar uma alma impetuosa. Especialmente numa fase em que ela está em constante combustão.
De tudo aquilo que posso sentir, não me resta dúvidas de que o amor pelo intelecto é o mais profundo e sólido deles. O mais embriagante, nefasto e perigoso. O único capaz de prender-me e gozar de minha pura admiração, respeito e carinho. Não só a admiração prévia – a primeira das paixões, segundo Descartes – como tudo de indescritivelmente bom que ela traz. Melhor que isso: as desavenças, faíscas e discussões são, ainda que desagradáveis, ricas e interessantes. Se posso citar uma vulnerabilidade amorosa, é esta. Felizmente, todas que a tentarem simular, se não rechaçadas já numa primeira instância, serão identificadas brevemente.
Experiências. Happenings. Muitas delas estão guardadas, intocáveis a meu modo. Algumas de fato foram únicas e tiveram um impacto real e palpável em minha vida. Por mais que farpas, atritos, desentendimentos, brigas, desfechos traumáticos (etc) possam ter ocorrido, guardo com imenso carinho e consideração aquilo que é só nosso, os momentos sublimes, fugazes e indestrutíveis que são apenas do casal e nada pode manchar. Sem contar tudo aquilo que nutrimos um pelo outro, e que é exclusivo dos dois. Ponto.
A atração carnal tem, também, seus encantos. Aquela coisa absurda de pele. Da libido desenfreada, pura e simples. E é estupidamente gostoso e fugaz, por natureza. Experimentar dos dois é sempre válido.
A frase de Flaubert que abre este texto expressa com amplitude, em poucas palavras, o que acho fundamental para a existência: ter tesão pela vida. Continuar descobrindo. Sempre. Não só no campo “físico”, mas pessoas, lugares, sabores, amizades, músicas, livros, autores, filmes, idéias, sensações, desafios, situações. Estar, permanentemente, aberto ao que se apresenta e, mais que isso, fazer acontecer. Não se trata de auto-ajuda. Mas de atitude. Para que a vida, em suma, aconteça, é necessário ter desejo por ela, ter vontade de realizar as nossas aspirações e lidar com as novas que surgem. É saber – e buscar – ter “o pasmo essencial” apregoado por Pessoa. É como a equação shakesperiana, respondida por Hesse, se resolve: ser é ousar ser. Passagem que teve impacto ímpar em minha vida. Pois a letargia é a morte. Nossa única certeza é a impermanência. E a inconstância, o mais previsível dos estados.
Relações humanas, parece-me, são o campo mais complexo que podemos tentar entender. Justamente porque não há nada, absolutamente nada sólido que nos une uns aos outros: e cada vez menos. Na brincadeira da modernidade, vamos nos tornando bem mais fruto do nosso tempo do que gostaríamos de admitir. Eu, inclusive. O perigo de se lidar com máscaras, é acabar as introjetando. E aturdir-se de modo contínuo, principalmente sobre si mesmo.
Mas não há nenhum padrão, nenhum juízo de moral, nenhum caminho pré-estabelecido a se seguir, nada mensuravelmente “bom” ou “ruim” nesta “história”. A vida, felizmente, não é uma ciência exata. E eis, sob todas as outras, a maior graça que ela nos proporciona.
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