– Prum, prum, disse ela. Não, começaremos do momento exato. – Um chopp escuro com morango, por favor. – Para mim, um claro tradicional. Moça bonita. Nitidamente idiossincrática. Veja só. Cachecol vermelho. Certo desconforto no olhar. Cabelo curto. Boca convidativa. Desprezo pelo mundo. Desprezo… – Conheces Joyce? – O pior de se ler Joyce é que se acaba querendo escrever como ele. Desconheço exercício maior de auto-humilhação. Riso comedido. Concordância satisfatória. – Dostoiévski, por exemplo. Inventou o romance polifônico. Joyce, então, só pode ter inventado Deus. O irlandês quebra o inevitável perspectivismo humano. Ele é todos os pontos de vista. Logo, Deus. – Isto cheira a Stephen Dedalus… – Espero que eu seja perdoado por criar o alter-ego do alter-ego. Mas sinto-me mais próximo de Winston Smith. ("bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronnton nerronntuonnthunntrovarrhounawn-skawntoohoohoordenenthurnuk!"). O lugar deixara de fazer sentido. Era impossível ver algo ao redor. Tudo se esfumaçara. Não estavam apenas distantes, mas ininteligíveis. Menos ela. O mundo, para ele, convertera-se em uma única pessoa. – Orwell. Devemos muita coisa a ele. Boa parte da lucidez e coerência presente na literatura do século XX. Pelo menos. – Winston e Julia. Um dos relacionamentos mais belos… – Vamos sair daqui? Gostaria de paz ao ter contigo. Nem era preciso justificar. Roubara-lhe dos outros, de tudo que era ordinário, da desilusão, de si mesmo. A noite estava fria. Fria o bastante para ser manipulada. Observava-a, ainda, com cautela. Tinha medo. Reunia forças para quebrar o muro. Sentia o cálido toque da confusão. Ela tocou-lhe a pele. – Estás gelado. Winston hesitou. O que viria agora? Será que Julia diria “eu te amo”, como no livro? Encontrava-se completamente entregue, na verdade. – Deixe-me aquecê-lo. Julia aproximou-se com cuidado. Enlaçou-o com o símbolo rubro de sua coragem. Buscou uma confirmação no olhar. Beijaram-se. Suave e docemente. O sublime passara a existir. As armaduras cederam. O muro foi abaixo. Entre os dois já não existia nenhuma barreira. Estavam arrebatados mutuamente. |
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