Na coluna anterior, abordamos o condicionamento. O inquirir, a dúvida, a perscrutação de todos os “valores” que nos são ensinados. A questionar o “hábito” como sintoma da complacência nefasta. Chegamos, então, a revolta. Revoltar-se implica perturbação moral, indignação, agitação. Só se revolta quem se torna consciente. E quem se torna consciente nunca mais pode voltar à ignorância. Quem toma a pílula azul está condenado à luta, à insatisfação. O revoltado é um insatisfeito por excelência. Estamos, em suma, condenados à infelicidade.
Mais que isso, nós reclamamos o direito de sermos infelizes. Porque só a ignorância, completa e bestial, pode proporcionar a felicidade. Em contrapartida, somente a revolta me permitirá o desenvolvimento. Só ela pode nutrir-me da matéria basal pela qual guio-me enquanto ser vivente. A felicidade, como representante da satisfação sem infortúnios, da acomodação e do encantamento, é perigosa. O verdadeiro estímulo consiste em não estar satisfeito. Tal estado de espírito é altamente construtivo e não carrega nenhum traço de tristeza e/ou alienação.
Pelo contrário, a insatisfação é a representante máxima de nossa bem-aventurança. É a nossa sentença. Que nos condena a morte. Se a maioria dá a vida ao establishment, nós damos à liberdade. Liberdade no sentido de não deixar que construam nossa vida por nós. Liberdade de assumir todas as nossas posturas, escolhas, ideologias, crenças, vontades. Damos por nós mesmos, não pelos outros. Um sacrifício em prol de si mesmo. A coragem de sair do escudo da massa, do rebanho, para nos encontrarmos com aquilo que somos. E só duas almas livres podem entender-se mutuamente e transformar o egoísmo intrínseco de suas constituições numa dialética rica e prazerosa – assim é que nascem os verdadeiros filhos da revolução.
Ao mesmo tempo que liberta, a consciência condena. Os alienados são felizes porque, para eles, não há com o que se revoltar. Nós, ao contrário, sabemos que estamos condenados pelo mundo (tal qual o é). Somos a antítese dele. Estar em choque com o lugar onde se vive implica um embate diário, constante. E é inadmissível para o establishment que nos proliferemos.
Desmistificando um sofisma: o insatisfeito não é pessimista. Quando não se espera nada de bom, tudo o que é novo (automaticamente empurrado ao abismo) será repelido. Por conseqüência, toda dúvida, quebra, vanguarda, revolução, será suprimida e soterrada. O pessimismo é o mecanismo pelo qual o sistema pretende manter-se invulnerável. Os “positivistas”, direitistas, os sorridentes bem feitores de nosso mundo são apenas propagadores da desgraça. Ao não propor nenhuma mudança, mas fazer “o que é possível” dentro do que “está aí”, eles consagram e autenticam a ordem existente. O capitalismo é um constante convite a refestelar-se na podridão. Não fomos nós que sentenciamos o “fim da história”, foram eles.
Se a história acabou, não há para o que lutar, não há a menor possibilidade de transformação social/humana/filosófica/ideológica/econômica. Se estamos no fim, podemos somente reciclar o que se encontra pronto. A única alternativa que sobrou é a retro alimentação da ideologia burguesa.
E nós? Bem, para o sistema, nós não existimos. Os insatisfeitos, revoltados, conscientes, intelectuais, questionadores, outsiders, não existem. São todos impessoas. Museus a tagarelar perspectivas utópicas. Cadáveres pútridos. Uma minoria que, pouco a pouco, se extinguirá definitivamente. Admitir a nossa existência seria admitir que seus mecanismos são falhos, que a história não acabou, que a mudança é possível. Reconhecer seu contra-tipo como legítimo é o primeiro passo para assumir sua natureza errônea, sua vulnerabilidade.
O sistema não pode reconhecer suas falhas. Precisa se iludir continuamente. Está fadado à alienação. Por isso a mentira é tão essencial à suas engrenagens, à sua permanência. A enganação advinda dela constitui a base moral de nosso mundo. E esta premissa, fundamental a ele, gerou tudo aquilo que conhecemos. Daí as ilusões de felicidade, família, amor, estabilidade, religião, paraíso, sociedade, entretenimento. Daí a ilusão da natureza humana. Daí estarmos sufocados pelas falácias vomitórias que nos são ensinadas.
A automatização do condicionamento humano. Nada que um pouco de humanidade não consiga quebrar.
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