Simplicíssimo

Sede – Part I

Acordado às 4 da manhã.

“Sabe, eu não sei o que você está pensando. Nós nunca sabemos. Isto tudo é uma grande piada de mau gosto. Uma operação detestável. Que se multiplica. E vai. Vejo grandes homens chafurdar-se na teoria. E ela é estupenda: têm sempre uma resposta pra tudo. Bela noção histórica, admirável análise dos problemas. Equilíbrio invejável. Eles perecem. Os mais notórios. Não falo da morte física. Falo da fraqueza. Plena, inescapável. Submissos ao sentimento miserável da…”

 

Cabeça explodindo. A parede estava suja, com uma espessa camada de poeira. Já não se dava ao trabalho de limpar. Bobagem, pensava ele. Sempre volta. Era um homem feliz. Dramático, palhaço até. Ator de renome na juventude. Escritor de relativo sucesso. A água da piscina se revelava turva, verde, originando as mais diversas bactérias. Larvas se multiplicavam sem dificuldade.

 

Há anos, ninguém mais o incomodava. Sabiam que tinha optado pela reclusão. Sequer amigos, a imprensa ou mesmo admiradores se atreviam a contactá-lo. Puro azedume. Um homem deveria ter o direito de se retirar, quando quisesse.

Café preto, sem açúcar, era o seu preferido. Completava o desjejum com duas torradas secas, duras, vez ou outra revestidas por um pouco de manteiga. Iluminava os cômodos com velas. A companhia elétrica já havia desistido dele. Não queria o status de maldito, outsider, excêntrico. Não desejava classificação alguma. A barba alongava-se em pseudo cachos de fios brancos e rublos. Passava o dia escrevendo, à mão, em meio ao cheiro familiar de mofo da sua biblioteca. Tinha quinze manuscritos prontos. Cogitava atear fogo em alguns deles, talvez. Mas, a esta altura, jamais relia um parágrafo depois de escrito. Produzia febrilmente.

 

Quando de bom humor, abria levemente a pesada janela, permitindo a entrada de parcos raios de luz natural. Gostava de observar o efeito da luz ante as partículas de poeira da sala. Podia ficar horas ali. Tragando os últimos charutos de seu estoque. Começara a fumar tarde, porém. Apenas depois dos 50.

 

Havia desenvolvido habilidades de pintor. Cada vez com maior freqüência, passara a se dedicar às suas telas. Fez, então, retratos imaginários de rostos ora baseados em conhecidos do passado ora remetendo a expressões idílicas frutos puramente de sua imaginação. No entanto, a paleta estava limitada pela tinta, que começava a rarear. A idéia de adquirir mais o causava repulsa pela própria possibilidade em si. Fazia dez anos que não saía de casa. E um motivo tão funcional seria incapaz de conseguir persuadia-lo.

 

Tinha um bom acervo. Havia planejado tudo, desde os mínimos detalhes. A reposição dos alimentos era feita por entregadores previamente informados. Comerciantes de longa data que o conheciam e respeitavam sua postura, cumprindo religiosamente o trato estabelecido. Semanalmente, sua cesta era deixada na portilha indicada, onde o dinheiro estava presente. Em verdade, detalhes ordinários da vida comum não o afligiam porque precisava de muito pouco para sobreviver. E construíra seu isolamento com cuidado.

 

Julgava-se o mais abençoado dos homens.

– Tenho tempo, e isto me basta.

Maurício Angelo

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