(Re)li esta noite a novela “A Metamorfose” (“Die Werlandlung”), de Franz Kafka. A edição que tenho em minha biblioteca é uma tradução realizada por Modesto Carone, feita diretamente do alemão (língua na qual Kafka escreveu toda a sua obra), publicada pela Editora Brasiliense, de São Paulo, em 1991.
Não sou um especialista em Kafka – vergonhosamente, conheço muito pouco de sua vida e de sua obra, apesar da evidente estatura do autor, “um dos maiores escritores do século”, nas palavras de Carone. Este texto, nem artigo, muito menos um ensaio, oferece apenas algumas impressões de leitura sobre a obra, de cunho bastante particular.
“A Metamorfose” foi escrita por Kafka em Praga, cidade onde viveu o escritor a maior parte de sua vida, em novembro de 1912, quando contava o autor 29 anos de idade. A novela, dividida em três capítulos, conta a tragédia de Gregor Samsa, caixeiro-viajante que certo dia “encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”.
A novela mostra os efeitos da transformação de Samsa, sua dificuldade em locomover-se e alimentar-se e, por fim, sua total incapacidade de se comunicar com sua família (pai, mãe e irmã).
Além disso, o leitor contempla, horrorizado, como a condição da personagem principal dissolve os laços familiares entre ele e o resto de sua família, criando, ao final, um clima de completo isolamento de Samsa, que passa a ser tratado não mais como um membro da família ou um ser humano, mas como um animal.
Escrevo que reli “A Metamorfose” pois este é um livro que possuo há vários anos, provavelmente adquirido na época de seu lançamento pela Brasiliense, há 15 anos. Entretanto, para ser honesto, devo dizer que fiquei chocado com o final trágico da história. Em minha lembrança do livro, acho que tinha fabricado um falso final feliz, que desmoronou essa noite, com a leitura que fiz da novela.
Em vários momentos, a condição de Samsa me lembrou a dos doentes terminais ou de pessoas que sofrem de uma longa e debilitante doença e que, aos poucos, tornam-se incapazes de realizar tarefas e ações a que anteriormente estavam acostumadas. Sei que essa incapacidade de fazer as coisas que antes fazíamos, e que nos definem enquanto indivíduos, muitas vezes é uma dor tão grande ou ainda maior do que a própria doença a ser enfrentada.
“A Metamorfose” de Kafka é uma metáfora para o isolamento, uma fábula sobre as condições que nos arremessam na solidão total. E o que é essa solidão total, a não ser a incapacidade de nos comunicarmos com outra pessoa, a ponto de palavras e gestos de intimidade se transfigurarem pouco a pouco e se transformarem em solene indiferença?
No caso de Samsa, a transformação é involuntária e ele sofre com ela. Ainda que a metamorfose se dê uma única vez, e não como um processo progressivo e degenerativo, ele sofre com a mutação em seu corpo. Apesar disso, a leitura me indicou que ele sofre muito mais com o impacto que sua metamorfose causa em sua família, pela qual ele era responsável do ponto de vista financeiro e se ressente quando sua incomunicabilidade e o ostracismo em que é lançado passam, pouco a pouco, a incentivar a emancipação de sua família.
Na novela, vemos a figura do pai, antes doente e aposentado, voltar a trabalhar e a reassumir a sua jovialidade (apesar de isso jamais ser retratado de forma a insinuar algum tipo de conotação sexual). A mãe e a irmã de Samsa passam a trabalhar; no caso da irmã, ela se transforma de menina em uma mulher. Ou seja, a metamorfose, a partir da personagem principal da novela, atinge a todos.
O que mais incomoda em “A Metamorfose” é, provavelmente, a evolução registrada no tratamento dispensado à Samsa por sua família. De uma cortesia eminentemente corriqueira, burguesa, até, a família passa a tratá-lo com crescente horror, chegando a desejar sua morte ou sua partida de casa.
A transformação descrita no comportamento da irmã de Samsa, Grete, que, no início de “A Metamorfose”, é terna e compreensiva, e que passa a hostilizar o irmão de forma até mesmo mais violenta do que o restante do grupo familiar, é chocante e nos deixa horrorizados.
Como isso se parece com a decadência dos relacionamentos que tantas vezes observamos e sentimos! Quantas vezes, em nossa própria vida, o amor e a amizade, que julgávamos eternos, transformam-se em indiferença e frieza?
“A Metamorfose”, como afirma seu tradutor para o Brasil, Modesto Carone, é uma metáfora sobre a condição humana. A novela de Kafka, escrita ainda em sua juventude, é uma parábola sobre o isolamento, sobre o que temos de mais cruel: a capacidade de tornar impossível a comunicação entre os indivíduos, o que só pode levar à crueldade e à violência, em suas várias formas.
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