A única certeza de Francisco Dumont naquele momento, ao desembarcar do Vitória-Régia, era a de que ele estava cometendo um grande erro. Ainda assim, ele respirou fundo, reuniu a pouca coragem que tinha e foi em frente, sob o sol forte do início da tarde.
Há algumas horas, enquanto o pequeno barco a vapor se aproximava cada vez mais da cidade, ele havia pensado em como seria estar de volta. A aposta de um grande dejá vu foi perdida segundos depois de descer do barco, pouco antes de pisar em uma poça-d´água. Como é apropriado, ele pensou.
A cidade de Santos, ele pensou, tentando memorizar a frase para uma futura rodada de cerveja, era uma gigantesca piada de mau gosto a céu aberto. Escondida por quilômetros de estrada e cercada por um imenso oceano esverdeado, a cidade era completamente diferente do que ele esperava.
Na verdade, nos últimos anos, as lembranças de infância e juventude tinham formado uma espécie de cidade de sonhos em sua mente e esse sonho pouco tinha a ver com a realidade. E o choque fez com que ele parasse de andar em direção à rua e acendesse um cigarro. O suor lhe escorria pela face e ele tentava inutilmente enxugá-lo com as mãos.
Francisco embarcara no Vitória-Régia ainda pela manhã. Como estava resolvido a voltar à cidade, ele preferira passar alguns dias em São Sebastião, preparando-se para o retorno. Tinha escolhido uma pousada que ele conhecia há muitos anos, propriedade de uma mesma família há vários anos.
A pousada, A Flor-del-lis ficava incrustada no centro histórico de São Sebastião, entre restaurantes de frutos do mar, uma feira hippie e caixas eletrônicos 24 horas que só funcionam até às dez. Mas, meu Deus, era a casa de sonhos de qualquer um! Um imenso casarão de três andares, com um jardim de inverno no centro do edifício, que dividia os andares e pavimentos. Dentro daquela casa, rosas, samambaias e trepadeiras se misturavam à decoração de almofadas, quadros e o delicioso aroma do incenso, que dançava juntamente ao sabor das flores.
Francisco alugara um quarto no último andar, com a varanda de frente para a feira hippie, e acomodara a pouca bagagem no armário, antes de andar pela cidade. Naquela noite, ele comprou uma pulseira feita de grãos de café, comeu um peixe assado e caminhou até o porto da cidade, admirando a paisagem noturna marcada pelo pisca-pisca dos navios ao longe. Só se decidiu a dormir, muito a contragosto, lá na alta madrugada.
No dia seguinte, Francisco escrevera três cartas, que foram levadas ao posto do correio pelo atendente da pousada. Eram cartas de amor, de ódio e de saudades. E o mundo continuou igual, intocável, mesmo com todas aquelas palavras desenhadas no papel.
Então, com a certeza de que era um homem livre e de que pouco faltava a acertar, ele se dedicou a um velho amor de há muitos anos: dias intermináveis nas praias, entre as dunas de areia e as ondas geladas do mar.
Na última noite antes da partida no Vitória-Régia, Francisco comprou dois charutos e uma dourada garrafa de José Cuervo e passou boa parte da noite na varanda do quarto, ouvindo os músicos da feira hippie, que cantavam e dançavam para o céu estrelado daquela cidade tão querida, tão amada.
O problema dos romances, Francisco escreveu, na resposta a uma entrevista concedida a um site de literatura, era que eles eram longos demais. E, em uma história, continuou Francisco, se você se estende demais, as coisas têm de terminar com morte. Por isso, ele preferia escrever contos e pequenos poemas em prosa. Duas, três páginas, no máximo! Mais do que isso, a realidade daria um jeito de se intrometer. Mesmo que não tivesse sido convidada.
Ele ignorou o suor no rosto e acendeu outro cigarro; pegou a pequena mala e a jogou nas costas. Quando a dor no peito surgiu, rapidamente se espalhando pelo braço esquerdo, ele ficou honestamente surpreso.
– Ainda não! Falta tão pouco…, ele pensou, levando a mão ao peito, instintivamente, enquanto caía no chão. A dor era paralisante e quase o impedia de respirar.
– E você acredita em Deus, Francisco?
– O problema não é esse. O que posso fazer se Deus acredita em mim e está sempre tentando falar comigo?
– Sei…
– Pelo menos, eu posso dizer que Deus é original…
– O quê?
– Antigamente, ele falava por estrondos, trovões, árvores em chamas, certo?
– Certo.
– Então… Depois, ele passou a nos falar em parábolas…
– Jesus?
– Isso.
– E agora?
– Agora, eu acho que Deus fala de outra forma. Comigo, pelo menos. Acho que, comigo, Deus fala por meio de ironias e piadas. Ele é um bom homem. O problema é que nem sempre tudo o que ele faz soa engraçado para nós.
Naquele último momento, ele compreendeu porque tinha voltado, depois de tantos anos. Francisco entendeu que ele e a cidade tinham completado um círculo. E que ele tinha retornado para dizer adeus a quem nunca havia partido.
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