A Equação Perversa do Mau Gestor do SUS
Admitamos o fato: o SUS possui muitas carências. Os profissionais são geralmente mal pagos e isso, infelizmente, transborda na qualidade insuficiente dos serviços prestados aos usuários do sistema. Também faltam recursos materiais e físicos. Notável a notícia das filas de espera por cirurgias cardíacas em crianças, por exemplo.
Mas o SUS é um mutante: em Porto Alegre pode levar dois anos para conseguir uma consulta numa especialidade X, quando numa cidade pequena como, digamos, São Marcos leva-se duas semanas. Qual o segredo? Em São Marcos tem um profissional que desenvolve um programa de atenção a pacientes da especialidade X, o qual é adequadamente suprido de recursos por sua Secretaria de Saúde. Este profissional tem ainda um bom relacionamento com os profissionais do centro de referência, o que garante uma boa vontade adicional no cuidado oferecido a seus pacientes.
São experiências que aqui e ali dão certo. Não esqueçamos também que há setores-bomba que a iniciativa privada não gosta de assumir. Um caso típico é o do atendimento de acidentados, grandes queimados e mutilados. As referências no RS para isso são quase todas SUS, basta citar o precioso Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre.
O fato que é quase tão universal quanto o próprio SUS é o do excesso de demanda. Isto quase sempre gera atendimentos rápidos, que já são clássicos, tanto em clínica geral quanto nas demais especialidades. Mas contextualizemos um pouco para não nos perder: um cara chamado Balint, na Inglaterra, há mais de 40 anos, já estudava a consulta rápida em clínica geral. Não porque ele gostasse dessa modalidade de atendimento, afinal de contas ele era um psicanalista, mas porque a consulta breve era uma realidade já naqueles tempos.
Balint estudou os princípios psicológicos que pareciam reger as consultas clínicas bem-sucedidas, estabelecendo bases para a compreensão da situação específica da consulta de 10-15 minutos. Não se tratava de aplicar uma “psicanálise em gotas” na realidade de clínica geral. A idéia básica é a de que existe uma técnica intrínseca à consulta rápida, capaz de aumentar a sua resolutividade. Depende, entre outras coisas, de prestar profunda atenção ao relacionamento médico-paciente, bem como de centrar a atenção no paciente, não no diagnóstico tradicional da doença.
Pode parecer engraçado, mas a técnica básica proposta para essa modalidade de atendimento chama-se “Técnica do Flash”, e se compõe de uma série de procedimentos a serem observados pelo médico durante a consulta. O “Flash”, na verdade, não se refere à velocidade da consulta, mas a um súbito rasgo de compreensão que permite a resolução da crise que levou o paciente a consultar. O interessante é que esse “flash” pode ser originado por intuição do próprio paciente, do médico, ou de ambos.
Bom, poderia me alongar mais, mas meu objetivo era mostrar que até o atendimento rápido não precisa por isso ser desqualificado, bastando para tal que o profissional médico se interesse pelo assunto. Há esperanças, mesmo num ambiente de consultas breves. Mais que esperanças, há desenvolvimentos científicos para embasar o que estou dizendo.
Claro que não há o que fazer se o profissional fizer um atendimento ultra-rápido, desinteressado, e sem deixar que o paciente sequer fale. Aí não temos carência de recursos, temos realmente má conduta.
Só que existem gestores do SUS que estimulam os maus profissionais: demandam grande volume de atendimentos, expressos em números de consultas, sem ter a menor preocupação com a qualidade ou a eficácia dos mesmos. Tenho visto o absurdo de bons colegas serem perseguidos e ameaçados por seus gestores, enquanto alguns maus profissionais perduram intocáveis por décadas a fio. Parece que, perversamente, o atendimento ruim é incentivado em algumas secretarias de saúde.
Há serviços que, em poucos anos, viram passar uma dúzia de bons médicos por seus quadros, os quais desistiam por não suportar a soma da equação perversa do mau gestor do SUS: pressão por números + péssima remuneração + exigência de carga horária incompatível com a remuneração + desprezo pelo valor do bom atendimento e, por conseqüência, pelo valor do próprio profissional + falta de recursos humanos e materiais suficientes + falsidade e cinismo na relação com o profissional. Tudo isso se iguala ao outro termo da equação, qual seja, o incalculável prejuízo sofrido pelo usuário do SUS.
Abraços,
Luiz Eduardo Flores Ulrich
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