Ou
Um homem comum visita o Tannhäuser de Wagner III
Voltamos ao belo campo, no vale que leva a Wartburg, e a Hörselberg. De novo, a plácida imagem da virgem Maria. Elisabeth, cada vez mais imbuída de um santo senso de dever, prosterna-se e suplica à virgem que a leve deste mundo, em troca do perdão de Heinrich.
Wolfran, o cavaleiro-trovador, retorna da floresta, com sua lira em mãos. Era entardecer, e ele sabia que mais uma vez a encontraria ali, rezando. O nobre roga aos céus que atendam as súplicas da pura princesa, que ferida de morte, ainda assim implora pela salvação de seu amado.
Os peregrinos estão para retornar, pois já começam as folhas a cair… Sim, são seus cantos! Bendizem o perdão alcançado, bendizem seu retorno à pátria, louvam a Deus! Vão-se.
Elisabeth não encontra Heinrich. Mais uma vez suplica aos céus… Entrega-se a um divino sacrifício, pela salvação do pecador. Wolfran pede que lhe acompanhe até o castelo, ela recusa com um gesto benigno, mas firme. Deve seguir sozinha o seu caminho. Vai ao encontro de Deus.
Anoitece. Wolfran dedilha sua harpa. Sua canção expressa os tempos difíceis que se aproximam, mas em seguida louva a beleza do amor imaculado, puro, que simboliza pela imagem da primeira estrela do anoitecer. Não tenho uma tradução razoável do libreto, mas suponho que a “Abendstern” seja a estrela vésper, ou seja, uma (não tão) pequena sutileza, pois é fato sabido que a “estrela vésper” é o planeta Vênus…
A noite se aprofunda, o palco escurece mais, trombones em surdina anunciam uma funesta chegada. Tannhäuser, sujo, maltrapilho, reconhece Wolfram e ambos conversam.
Sim, Heinrich foi a Roma. Peregrinou da forma mais penitente possível. Escolheu o solo mais pedregoso e espinhoso para castigar seus pés descalços. Enquanto os outros entoavam suas preces aos céus, ele derramava seu sangue em louvor a Deus. Queria muito ver aliviada a dor do anjo que chora por ele. Dormia sobre a neve, não aliviava sua sede nos córregos, antes preferia secar seus lábios ao sol.
Quando adentraram a Itália, vendou seus olhos para não contemplar as belezas daquele país. Chegando aos pés do papa, viu todos os peregrinos alcançarem o perdão papal. Batendo em seu peito, Heinrich confessou os seus pecados. O Santo Padre respondeu: “se estiveste no monte de vênus, estás maldito para sempre! Assim como de meu seco cajado, jamais brotará verde folha, da marca do fogo do inferno, jamais florescerá a tua salvação!”
Tannhäuser encheu-se de revolta. Voltou a suas terras, não para ver Wolfran ou qualquer outro de sua espécie, mas apenas para achar o caminho para o monte de Vênus.
Wolfran, ao ouvir aquilo, tomado de horror, tenta de todas as formas dissuadí-lo, pois sabe da esperança que ainda resta. Em vão clama por Heinrich, em vão tenta contê-lo: uma névoa rósea invade o palco, agora sim, totalmente escuro. Vênus retornou, para buscar o seu trovador fujão. Ninfas invadem a cena e começam a dançar. Tannhäuser, num transe demoníaco, só pensa no retorno às delícias, já que seu mundo não mais o quer.
Wolfran, cada vez mais horrorizado, pedindo aos céus por seu companheiro, num gesto derradeiro exclama: “Elisabeth!”
Heinrich, agora paralisado repete: “Elisabeth!”
Amanhece. Aos poucos o palco se ilumina, a névoa se dissipa. A deusa Vênus se foi. Ao fundo, um cortejo fúnebre se aproxima. Os cavaleiros e o coro louvam a alma do anjo que acabou de subir aos céus. Bendizem aquele por quem ela deu sua vida. Diante do caixão aberto, aos prantos, cai Heinrich Tannhäuser: “Bendita Elisabeth! Roga por mim!” – o cavaleiro morre.
O sol já brilha intensamente, e entra o coro dos jovens peregrinos (os velhos já haviam entrado, no cortejo). Um dos jovens entra em cena portando um cajado, coberto de folhas verdes e viçosas. Os jovens exaltam o milagre:
Bendito seja o milagre da graça!
A salvação chegou ao mundo!
O Senhor obrou um milagre!
Adornou com verdes folhas
O cajado sacerdotal!
Assim floresce a redenção
Para o pecador que arde no inferno
Anunciai que ele encontrou
A salvação com este milagre!
Desde as alturas reina Deus
Sobre este vale de lágrimas!
É imensa a Sua misericórdia!
Aleluia! Aleluia! Aleluia!
Todos os presentes, comovidos, respondem: “Deus concedeu a graça ao peregrino para entrar no reino dos céus!”
Não precisaria dizer que neste final a música vai ficando cada vez mais emocionante, e o “todos” significa isso mesmo, a orquestra inteira, os coros, os cantores, e o público, que Wagner espera ter envolvido completamente. Neste drama de conflitos humanos eternos, linear na aparência, mas com muitas ramificações a serem feitas por almas sensíveis, a solução não é bem a morte dos protagonistas, fim de quem não consegue admitir meios-termos, ou procurar soluções alternativas.
A solução é a esperança da vida após a morte, da paz eterna, da eterna resolução dos conflitos que nos castigam todos os dias, que dispensam o Deus vingador, ironicamente representado pelo papa, pois o sofrimento e o castigo da culpa são estados internos de espírito para os humildes peregrinos.
Wagner respeitosamente elogia aspectos do catolicismo que talvez tivessem algo em comum com suas idéias sobre Deus, sobre Cristo, sobre a Virgem, sobretudo suas idéias sobre o que seria um verdadeiro cristão, ainda que ele próprio não as praticasse, assim como o seu Tannhäuser… Desejaria o autor de Parsifal também a expiação? Difícil saber se esse homem, tantas vezes incoerente, soube algum dia compreender o Graal, que a vida inteira perseguiu.
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