O assunto é difícil e se presta ao entrechoque violento das paixões. Poderei ser bastante mal interpretado. Poderei receber adagas de fogo a serem cravadas em meu coração. É forçoso, pois, que esclareça alguns pontos.
Sou amplamente favorável e partidário da reforma psiquiátrica, tal como está na lei (ver Lei Federal nº 10216, de 2001 e Lei Estadual gaúcha nº 9716, de 1992). Este movimento preconiza o fechamento dos hospitais psiquiátricos e a sua substituição por uma rede de serviços de saúde mental, voltada a prevenir recaídas e reabilitar doentes com dificuldades de relacionamento social, familiar e laboral.
O serviço-símbolo desta rede é o centro de atenção psicossocial (CAPS). Nele atua uma equipe interdisciplinar com psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros, educadores físicos e, com um gestor bem inspirado, artistas plásticos, artesãos, músicos… Ah, esqueci do psiquiatra. Claro, nós também estamos lá, mas não mais como figuras centrais da atenção ao portador de sofrimento psíquico.
Somos parte de um menu de serviços que considera que a medicação é apenas uma parte do tratamento, mas não garante o tratamento da pessoa completa, com todos os seus sentimentos e relações, família, entorno social, etc. Adoro isso!
Bem… Desmontar os manicômios, ok. Mas onde estão as vagas psiquiátricas em hospitais gerais? Não abriram na mesma proporção dos leitos de manicômios que foram fechados. Não abriram e tão cedo não vão abrir. Os hospitais clínicos, especialmente os menores e em comunidades menos assistidas, não querem receber pacientes psiquiátricos. Têm medo, dizem que não saberiam o que fazer. Os governos não se esforçam muito, acham que os CAPS têm que dar conta de tudo…
Ora, tudo! O CAPS é para fazer parte de uma rede de serviços e não ser o único dos serviços. O grande diferencial deste serviço seria o de que uma equipe completa poderia dar uma atenção diferenciada para casos mais graves, selecionados exatamente por isso. Mas vá convencer a maioria dos gestores a contratar muitos profissionais para dar muita atenção a menos pessoas!
Acredito que 80% dos casos de surtos agudos poderiam ser resolvidos sem a internação tradicional, com serviços também previstos em lei, como os leitos “rápidos” (internação até 72 horas), equipes móveis de atendimento domiciliar e hospitais-dia. No hospital-dia, o paciente instável passa todo o dia, recebe suas medicações, tem cuidados de enfermagem e participa de atividades terapêuticas. À noite, retorna para a sua família. Onde estão estes serviços? As cidades maiores os possuem, mas em quantidade geralmente inferior à da demanda de suas populações. Cidades menores, nem pensem.
Há casos que infelizmente não conseguimos resolver sem internar em unidades psiquiátricas de hospitais clínicos. Nós não podemos tudo. Não somos onipotentes. Nenhum serviço sozinho pode pretender tratar a todos e em todas as situações.
Outro ponto: temos muitos CAPS que são modelo, estão funcionando de maneira exemplar. Porto Alegre tem pelo menos um, onde era o antigo CAIS 8. Também muito bom é o do Hospital de Clínicas. Mas a maioria dos CAPS do Brasil está com problemas sérios. Alguns funcionam exatamente da mesma forma que os antigos postões de psiquiatria. O atendimento é de massas, no pior estilo INAMPS. Aliás, nada mais parecido com o manicômio, no qual centenas de pacientes recebem atenção de meia dúzia de profissionais.
Em suma, a reforma tem se limitado ao fechamento de hospitais psiquiátricos e aberturas de CAPS, e nenhum serviço mais. Com poucas exceções modelares.
Querem saber do dinheiro? Há um financiamento específico e bom, previsto em lei, para a montagem dos serviços novos. Mas a verba cai no bolo dos Fundos Municipais de Saúde, junto com muitas outras, e amiúde não recebe o destino que deveria tomar. Os hospitais clínicos que abrirem leitos psiquiátricos receberão também incentivo financeiro. Todavia não o fazem.
O resultado, doentes em crise e sem o atendimento devido. Riscos graves de suicídio sem atenção. Famílias em desespero recorrem ao judiciário, para que este obrigue as prefeituras a comprar vagas de internação para os pacientes. Às vezes o socorro vem tarde demais.
Outro resultado interessante aparece na tese de mestrado do psiquiatra Rubem Menezes, de Porto Alegre, recentemente publicada. O número de internos no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) aumentou. A maioria é de esquizofrênicos. A maioria não matou ninguém.
Uma interna está lá há 20 anos porque deu um tapa numa familiar. A família não a aceita, tampouco os hospitais. E a maioria dos internos do IPF que cometeram homicídios não receberam atenção especializada antes do crime.
Por fim, uma curiosidade. A medida terapêutica que sozinha mais fez pela reforma psiquiátrica foi a descoberta da Clorpromazina em 1950. Este remédio possibilitou a alta de 50 a 70% da população dos manicômios do mundo. O Hospital São Pedro tinha em torno de 6 mil moradores nos anos 60, hoje tem cerca de 700, a maioria teve alta antes da lei da reforma psiquiátrica.
A maior parte da questão, portanto, reside aqui fora. O estigma da doença mental reside aqui fora, conosco. A preocupação maior do Ministério da Saúde e de todos os órgãos estaduais e municipais subsidiários atualmente precisa ser a atenção aos que estão aqui fora, esperando já faz muito tempo. É preciso eliminar os manicômios mentais da sociedade, os quais, meus amigos, definitivamente não mais residem no Hospital São Pedro.
Já que a lei é boa, cumpra-se a lei.
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