O Humano e o Simples
Meu apreço por Fidelio, única ópera de Beethoven, é antigo. Tenho algumas gravações dela e mesmo não tendo nenhum tipo de conhecimento técnico sobre música, me reservo o direito de ter opinião sobre as interpretações (gosto muito de uma do Klemperer). Mas há tempos não pensava no assunto.
Há três dias, entretanto, tive o prazer assistir a uma interpretação algo nova (2004), realizada em Zurique. O prazer maior que encontrei não foi tanto no resultado, mas na reação calorosa do público. Ainda me espanta a sensação que esta obra causa e me alegra saber que quase 200 anos depois ela permanece viva (pelo menos em corações suíços).
Fidelio tem por base uma história muito simples. O herói aprisionado no calabouço por um malvado vilão e a luta de sua leal e corajosa esposa para resgatá-lo. A salvação se dá no último momento, mediante a chegada do ministro, anunciado por um providencial toque de trompete. Como a chegada da cavalaria nos filmes de bang-bang. O tema do resgate era moda na época, a ambientação “bastilhana” também. Os presos são todos injustiçados, todos vítimas da repressão. Tudo à maneira romântica pós-revolução francesa.
A obra é velha, não é escrita em italiano, não tem nenhuma melodia com o forte apelo popular de uma La donna è mobile. O Pavarotti não costuma cantar Gott! Welch Dunkel hier! Não tem nenhuma flauta mágica, nenhuma rainha da noite. O enredo tem dificuldades, sempre teve. Não tem o brilho genial de um Wagner. O libretto passou por um punhado de autores, a ópera por três versões, até chegar-se à final.
Os ideais expressos no discurso de Fidelio não comovem mais quase ninguém. Quase ninguém acredita no herói incorruptível, agrilhoado por “ousar dizer a verdade”. Quase ninguém acredita na “gentil esposa” guiada pelo “dever do fiel amor conjugal”. O burguês médio dos tempos de hoje é muito cínico.
A decepção e o pessimismo, e o pós-tudo-que-se-passou-de-200-anos-para-cá engendrou não uma, mas várias gerações de céticos amargos que tendem a brindar tais obras com não mais que um risinho irônico.
Beethoven e seu Fidelio: após duas guerras mundiais, guerra fria, anticoncepção hormonal, AIDS, revolução sexual, The Simpsons e descongestionantes nasais tópicos, o que salva esta dupla do completo esquecimento?
Não sei a resposta. Não sei nem mesmo se cabe a pergunta. Sei apenas que este monumento da música de todos os tempos vive, assim como Elis, assim como Elvis. Beatles forever, Fidelio também. Pelo menos na Suíça e desconfio que noutras plagas. E não como mero objeto de apreciação acadêmica. Algumas platéias ainda aplaudem esta obra até a exaustão.
Eu não sei a diferença entre uma clave de sol e uma de fá. Mas Fidelio sempre me agarrou pelo coração, desde o começo. A primeira vez que ouvi, eu nem dispunha de libretto, apenas o contato direto com a música foi suficiente. Geração após geração surgem jovens sensíveis aos ideais desta ópera, incluindo a sua peculiarmente piegas relação com Deus. Por quê?
Um resumo do que penso: qualquer um que já tenha sentido raiva, solidão, desespero, ânsia por liberdade, desejo de justiça, sede de vingança, medo, culpa, amor ingênuo, amor fraternal, amor eterno, inconformidade, esperança, religiosidade ou compaixão corre o risco de cair no truque de Fidelio. Todas estas emoções estão muito bem representadas nesta obra. Beethoven colocou sua música a serviço da estória e fez representar um quadro muito humano de forma simples e direta.
O tipo de trabalho saiu de moda, as emoções não. Os ideais divulgados pela obra também, apesar de tudo, teimam em permanecer.
Alguns bobos, portanto, continuam a encenar Fidelio. Outros tantos seguem aplaudindo. O sangue ainda ferve, o peito ainda aperta, as lágrimas ainda correm. Leonora continua a resgatar o seu Florestan, sempre. De coração para coração.
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