O Torneio de Cantores de Wartburg
Do que fez Heinrich Tannhäuser enfurecer um salão lotado de cavaleiros armados, e como foi que se safou da morte certa.
ou
Um Homem Comum Visita o Tannhäuser de Wagner II
Elisabeth tem dúvidas. Quase não consegue conter seus sentimentos amorosos, mas o misterioso sumiço de Heinrich a consumiu de tristeza por muito tempo: “Heinrich, Heinrich, o que me fizeste?”.
Tannhäuser desconversa quanto ao seu passado. Seu entusiasmo presente, pelo reencontro de sua mui-amada, o faz bendizer e exaltar o momento, bem como o “deus do amor” que o guiou de volta. Elisabeth se deixa contagiar pelo entusiasmo, e ambos cantam um tradicional dueto, acompanhados de longe por um resignado Wolfran. Este se limita a amar em segredo a princesa, em suas reflexões poéticas. Os apaixonados fazem menção de se abraçar, mas não o fazem, despedem-se. Heinrich deixa o salão junto com Wolfram.
Logo entra Hermann, soberano da Turíngia e tio da princesa. Ele veio recepcionar os convidados, pois o torneio dos cantores já está para começar. Um extraordinário número deverá comparecer, pois a corte já sabe que a princesa voltará a abrilhantar os embates poéticos com sua presença. As expectativas de todos são muito positivas. Hermann lê nos olhos de Elisabeth o que se passa em seu coração, mas pede a ela que mantenha seus sentimentos em segredo por mais um tempo.
Ouvem-se então fanfarras pelos metais, anunciando a chegada dos convidados. Estas fanfarras, às quais vão se somando a melodia, e depois o coro da entrada dos convidados, estão entre aqueles momentos mais inesquecíveis de toda a História da Música, capazes de figurar em muitas coletâneas populares de clássicos. O ponto culminante é o coro, que vai num crescendo, à medida em que entram os nobres e suas esposas, atingindo seu maior volume quando o salão já está cheio.
Entram os trovadores, cada qual portando sua lira. Herrman convoca os cantores a descrever a essência do amor. O que melhor cantar sobre esse tema, receberá “o prêmio” das mãos de Elisabeth.
Wolfran von Eschenbach é o primeiro. Seu canto sublime exalta o amor cortês, que deve ser admirado e protegido, mas nunca profanado. O amor para ele, como para todos no recinto, é sublime, celestial, é como uma estrela, que só à distância se aprecia em toda a sua beleza, e só assim pode encher de alegrias o coração. Todos saúdam a belíssima canção de Wolfran…
…Todos, menos Tannhäuser, que tem uma concepção, digamos, mais prática do amor. Da Fonte do Amor, descrita por Wolfram, Heinrich não concebe que possa satisfazer-se quem nela não se arroje com seus lábios. A Fonte é inesgotável, ensina Heinrich, como assim o é seu ardente desejo e sua sede insaciável de delícias.
Tal ponto de vista não satisfaz a audiência, e Walther von der Vogelweide replica, seguido pelo sombrio e combativo Biterolf. Ambos são interrompidos pelas trovas de um Tannhäuser cada vez mais exaltado e agressivo. Biterolf é frontalmente ofendido e saca a espada, ao que Hermann responde separando os adversários: “haja paz!”, brada.
Wolfram inicia, apressadamente, uma nova canção, em tom conciliador, mas, ao retomar suas imagens sobre o amor, é rudemente empurrado por Heinrich que, parecendo possuído por um estado de exaltação incontrolável, canta os prazeres do amor erótico, terminando por chutar inexoravelmente o pau da barraca: “só aquele que haja gozado em teus ardentes braços pode saber o que é o Amor! Pobres desgraçados, que nunca saboreastes o Amor! Correi ao Monte de Vênus!”.
Pânico total. Tannhäuser “gozou dos prazeres do inferno e habitou o Monte de Vênus”!!! As damas fogem do salão, horrorizadas. Os cavaleiros, dezenas deles, sacam suas espadas, e já estão prontos a fazer o “pecador” sangrar até a morte, quando Elisabeth, que não arredara o pé, intervém. Cobrindo Tannhäuser com seu corpo, desfere estas palavras:
Para trás! Não temo a morte!
Que me importam vossas espadas
Se é mortal o golpe que dele recebi?
Elisabeth convence os cavaleiros de que estes não podem privar o pecador de sua salvação, mediante o arrependimento e a penitência. Ela mesma, que teve seu coração despedaçado, implora por sua vida, lembrando que por ele também sofreu o Cristo.
Ela é, neste momento, a imagem viva da virgem Maria, vista no primeiro ato, pois com ela está plenamente identificada, a ponto de oferecer sua vida em martírio pela salvação do pecador. Suas palavras, as de uma “virgem pura”, como ela mesma assinala, têm poderoso efeito sobre os cavaleiros, que a tomam por um anjo vindo do céu, portador da palavra divina.
O discurso da princesa vai gradualmente guiando os nobres, que de uma radical atitude punitiva, estilo Antigo Testamento, oscilam para o perdão dos pecados, mediante o arrependimento e a penitência. Os ânimos se acalmam. Tannhäuser, desperto de seu êxtase infernal, se mostra agora mortalmente arrependido, implorando piedade aos céus. O fato de que ele agora tenha aquebrantado seus ímpetos, prostrando-se ao chão, favorece a benevolência cristã, recém-desperta na sala.
O soberano Hermann dirige a ação para seu término de forma mais objetiva. Em primeiro lugar, o pecador está banido da Turíngia. Em segundo lugar, apesar de todo o seu rechaço, ele indica um caminho pelo qual Heinrich poderá alcançar a salvação: seguir os peregrinos para Roma, onde eles esperam obter o perdão do papa.
As espadas dos cavaleiros uma vez mais se lançam contra Heinrich: ou redime-se de seus pecados, e retorna perdoado, ou não retorna nunca mais.
Providencialmente, ouvimos ao longe o canto dos peregrinos:
(Cai sobre mim o peso de meus pecados,
Já não posso mais suportar!
Não busco nem alívio, nem descanso,
Mas sofrimento e penitência) – 1º ato
Expiarei com humildade minha culpa
Na solene cerimônia da Graça.
Bendito aquele que persevera em sua fé
Pois será redimido pela penitência
O coro definitivamente suaviza o clima, que agora é mais de comoção do que de ira, e Tannhäuser, impulsionado por essa nova esperança, brada: “para Roma!!!”. Ao que todos no salão respondem “para Roma!!!”, enquanto nosso herói sai do salão correndo. É claro, os cavaleiros não perdem a oportunidade de apontar a direção de Roma com suas espadas, num estrondoso incentivo às boas intenções do pecador infame.
Falha a tentativa de Tannhäuser em conciliar os mais nobres sentimentos religiosos com o amor carnal e os prazeres mundanos. Ele força a situação até o ponto da ruptura, e aí é que se forma a incompatibilidade. Não apenas os dois mundos de Tannhäuser são inflexíveis. Ele próprio é inflexível, pois tenta impor incondicionalmente a sua vontade, sem considerar o ponto de vista dos outros. Defende seus ideais em termos de “tudo ou nada”, sem deixar nenhuma possibilidade de se achar uma solução intermediária.
Provocou uma verdadeira batalha entre si e os cantores, e de resto provocou o fígado de toda a audiência, ao ferir grosseiramente, com ataques pessoais, os sentimentos de seus colegas. Nem o público expectador poderá desculpá-lo, pois mesmo que achemos exagerado o moralismo turingiano, isso não nos autoriza a sair ofendendo a tudo e a todos. As pessoas, nos mundos de Tannhäuser, de boa vontade desejam saudar as melhores qualidades do poeta, mas este insiste em lhes fazer engolir o que ele tem de pior.
Talvez Wagner quisesse exatamente isso, de forma que o rechaço turingiano ao protagonista, bem como seu ulterior arrependimento, parecesse perfeitamente aceitável. Mais que isso, dá motivo a que finalmente Tannhäuser vá fazer o que pretendia desde o começo, quando fugiu do Monte de Vênus: expiar seus pecados mediante o sofrimento e as privações.
Entretanto, ainda uma vez mais, a solução encontrada é daquelas do tipo “tudo ou nada”. O que acontecerá se o papa decidir não perdoá-lo? Pelas características da obra, se falhar a solução mágica, sempre haverá uma saída trágica…
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