Simplicíssimo

Um Homem Comum Visita o Tannhäuser de Wagner

Este é o relato de um leigo. Contém as idéias e associações que fui fazendo ao conhecer o Tannhäuser de Wagner. As melodias mais famosas desta ópera são velhas conhecidas. Fazem parte de muitas coletâneas do tipo "para gostar de clássicos". Há também pelo menos um filme sobre uma montagem desta obra.

Logo no prelúdio, a célebre melodia do canto dos peregrinos, apenas pela orquestra. Num campo vê-se os peregrinos, pecadores buscando expiar suas faltas, que passam, dolorosos, em romaria. Eles se vão e, sem mais aquela, uma mágica transformação leva a ação (e a música) para o topo de um monte onde, numa espécie de gruta, homens e mulheres dançam sensualmente, representando uma bacanal.

No centro da gruta, Vênus, a deusa do amor, e Tannhäuser, o cavaleiro que a conquistou com suas canções, descansam. O cavaleiro, cansado dos prazeres da carne, anseia pelas agruras do mundo, e suas belezas mais simples (o céu, os rouxinóis, o sol, as estrelas, o verde dos bosques, etc). Desde quando ingressou na gruta do Monte de Vênus (literalmente, Venusberg), nosso (anti)herói ficou proibido de todo o contato com o mundo exterior, em troca dos infinitos prazeres carnais proporcionados pela deusa.

Agora, implora para sair, pois não agüenta mais. Ao que parece, o prazer infinito é entediante. Vênus o amaldiçoa, dizendo que o mundo o rejeitará, que ele nunca será perdoado, nunca será salvo. Tannhäuser retruca: "salvação?! minha salvação está em Maria!!!".

Ao bradar "Maria", outra vez o cenário se transfigura magicamente, e retornamos ao ponto de partida: um belo campo, com uma imagem da Virgem Maria, os peregrinos orando com fervor e o cavaleiro, agora prostrado, diante da santa.

Ouvem-se fanfarras: seus velhos companheiros, também cavaleiros e cantores da corte de Wartburg, governada pelo príncipe da Turíngia, retornam da caça. Embora não entendam porque "Heinrich"-Tannhäuser esteve assim, tão sumido, convidam-no a retornar para o seu círculo, se é que retornou em paz.

Nosso (anti)herói recusa. Sente-se impuro, ou algo assim, e deseja apenas seguir seu caminho. Seus colegas insistem, mas ele é só persuadido quando o nobre Wolfram von Eschenbach lembra-lhe do nome de Elisabeth, sobrinha do soberano da Turíngia.

Tannhäuser é informado de que, adivinhem (tchan, tchan, tchan, tchan): conquistou Elisabeth com suas canções. Ela nunca mais freqüentou os tradicionais torneios de canto de Wartburg, desde a partida de seu amado.

A proposta inicial era voltar ao mundo para se redimir dos pecados mediante sofrimento e privações, mas Heinrich-Tannhäuser, aparentemente, padecia de amnésia para fatos recentes. Entusiasmado pela imagem da pura (ou seja, virgem) Elisabeth, o cavaleiro alegremente se reúne aos seus companheiros: "à ela, à ela! levem-se à ela!"…

Temos nesta breve resenha do primeiro ato, um festival de ambivalências. O mundo de prazeres carnais de Vênus alterna-se com o a exaltada religiosidade da corte do soberano da Turíngia. E Tannhäuser quer, na verdade, viver nos dois mundos ao mesmo tempo, desejo esse que encontra rechaço, tanto no mundo da moral venusiana, quanto no circunspecto mundo da moral turingiana. Esse contraste haverá de acentuar-se, como veremos num próximo texto.

Estórias medievais, antigas lendas européias, e até o catolicismo em si são assuntos por demais desgastados pelo cinema, especialmente o norte-americano. Boa parte do impacto da ópera fica absorvido por esse desgate. Também a visualização de alguns efeitos no palco parece bem mais fraca hoje do que devia parecer há 150 anos, e para entender isso basta assistir a "O Senhor dos Anéis". Tem muita coisa fora de moda no Tannhäuser, o que pode enfraquecer sua apreciação por olhos acostumados a espetáculos cinematográficos.

Também vivemos tempos sarcásticos, e estar no interior da gruta do "monte de vênus", por me lembrar da anatomia da vulva, soa engraçado, bastante próximo do ridículo. Apenas descanso ao descobrir que o próprio Wagner desistiu de intitular a obra de "O Monte de Vênus", quando soube dos gracejos que começaram a circular entre o público, especialmente os oriundos da Escola de Medicina de Dresden.

Apesar das aparentes fraquezas, meu mergulho na obra foi emocionalmente rico. Talvez eu nunca saiba explicar a causa do nó que se forma na minha garganta ao escutar os peregrinos cantando suas súplicas. E apenas agora começo a me mover pelas sutilezas do texto wagneriano, mas me parece que o conflito emocional que ele tenta estabelecer ainda funciona.

Wagner justapôs duas lendas diferentes (e não uma, como alguém escreveu na wikipedia), a de Tannhäuser e a do Torneio de Canto (ou batalha dos cantores) de Wartburg. Se puderam reparar, a entrada dos cavaleiros em cena faz a ponte entre as duas lendas, o que nos levará diretamente ao Torneio. Mas isso pertence ao segundo ato, e é assunto para um outro dia.

Luiz Eduardo Ulrich

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