Simplicíssimo

Coincidências

Terminei de ler Leviatã (não do Thomas Hobbes), de Paul Auster e, em verdade, após uma quantidade considerável de páginas – 320 – a sensação de vazio é o sentimento mais táctil que tenho. E engraçado o quanto isto vem se aprofundando conforme vou conhecendo cada vez mais a literatura de Paul Auster. Se por um lado, a engenhosidade de Noite do Oráculo foi a responsável por me fazer querer penetrar na obra de Auster, ironicamente, é esta mesma “engenhosidade” (e aqui as aspas cabem por se tratar de um recurso muito gratuito – a engenhosidade das reviravoltas que, a princípio deveriam se tratar de surpresa, mas é só imaginar um caminho oposto ao que o escritor quer que se imagine que a trama se encaminha, para se descobrir facilmente para onde realmente o texto vai) que tem me deixado um tanto quanto enfado a cada livro seu que leio.

Vamos brincar novamente com aquele conceito de resumo da obra do autor. Se literatura, ereção e Israel pode ser [maléfica e reducionistamente falando] um resumo interessante para a obra de Philip Roth [olha outro judeu aí!], a obra de Auster, até o presente momento, tem encontrado em uma única palavra o seu resumo: coincidência. A fixação do autor pelo tema da coincidência, do acaso transformando vidas e de personagens que se deixam fascinar – da mesma maneira que o autor – pela “mão do destino” a lhes guiar os passos chega às raias da repetição. A coincidência para Auster e seus personagens tem tanta importância quanto na história de Flitcraft, de “O Falcão Maltês” de Dashiel Hammet. Este personagem de Hammet, homem comum, norte-americano, que, um belo dia, ao escapar ileso do acidente de um andaime que, desabando, quase o atinge a cabeça, crê que escapou da morte para recomeçar sua vida novamente. Sem se importar com maiores providencias, decide que não pode mais viver como antes e muda-se de cidade para iniciar uma vida nova. Vê aquele ato como um “aviso”, uma mensagem do destino para mudar sua vida – não importando a conseqüência dos seus atos, é um homem que acredita totalmente no invisível, crê naquilo que não é possível explicar racionalmente, mas toma aquilo como rota segura a que se agarrar.

O tema é explorado da mesma maneira em O Livro das Ilusões. A “coincidência” que o autor guarda neste romance é a seguinte: após cair em profundo estado de tristeza, chegando a pensar no suicídio, por ter perdido esposa e filhos em um acidente de avião, professor universitário se deixa fascinar, ao acaso, por um antigo comediante, misto de galã e palhaço de películas antigas, Hector Mann, que descobre em uma de suas tantas madrugadas insones, zapeando pelos canais de televisão. O consenso geral é de que o ator já é morto. Como resta ao professor descobrir um maneira não-dolorosa de gastar a fortuna que ganhou de indenização pela morte da esposa, ele acaba tomando como projeto uma biografia de Hector Mann. Assim, percorre várias cidades à procura de dados sobre o ator, assitindo a filmes antigos e raros, empreendendo uma verdadeira maratona para esmiuçar a vida de uma celebridade pouco conhecida e da qual quase todos se esqueceram. Uma séria de coincidências vai atar sua vida à do ator e só será surpresa para ele mesmo quando descobre que Hector está vivo. As tentativas de reviravoltas, coincidências e “obras do acaso”, se sucedem em tão grande quantidade, e de maneira tão gratuita e aleatória, que, longe do fascínio com que tal tema surge em “Noite do Oráculo”, por exemplo, se tranforma aqui em fato corriqueiro, em detalhe que pode aparecer a cada virada de página. Quase um Deus Ex-Machina a levar pela mão o protagonista.

Mas Auster gosta deste recurso. Gosta tanto – e, por motivos que, descubro agora, lendo A invenção da solidão, são pessoais (afinal, neste livro de memórias esparsas, o autor analisa a figura de seu pai e sua própria condição de pai e descobre um fato incrível na história de sua família) – que ele surge, novamente, em Leviatã.

Publicado nos Estados Unidos em 1992, o romance se inicia com a explosão de uma bomba e a subseqüente morte de Benjamim Sachs. O narrado é Peter Aaron – alter ego de Paul Auster, conhecido pela obsessão de projetar a si mesmo em sua ficção. Ele tenta reconstituir a história de Ben Sachs para que entendamos como um escritor de ficção, que se desilude cada vez mais com a literatura como instrumento de mudança, acaba se tornando um escritor de ensaios, resenhas e toda sorte de artigos não-ficcionais, acreditando que a ficção não tem mais nada a lhe oferecer, até o descrédito total na escrita. E como, através de instrumentos do acaso, Sachs se torna uma espécie de terrorista patriótico, destruindo réplicas da Estátua da Liberdade em protesto contra o desrespeito dos políticos aos “ideais nacionais” antigos e profundos.
O narrador vai costurando várias histórias distintas, em flash back: relembrando desde a primeira vez que encontrou Sachs, sua mulher Fanny – com quem acaba tendo um caso – e dedicando algumas páginas a uma esquisita e fascinante figurante: Maria.
Maria é uma espécie de artista não convencional, misto de escritora, fotógrafa, artista plástica, que empreende os mais estranhos projetos para satisfação de seu ideal artístico. Um exemplo de suas “intervenções” – que surgem do acaso, sem planejamento – está o plano que empreende quando conhece um homem que considera muito bonito, porém, pessimamente vestido. Durante vários anos, passa a presenteá-lo anonimamente com gravatas, camisas etc. deleitando-se, nos reencontros casuais na casa de conhecidos em comum, ao ver que o tal homem passa a usar as peças que ela enviara. Crê que assim constrói uma obra-prima em termos de beleza masculina – só para ela mesma. Costumava também seguir passantes durante dias ou mesmo meses a fio, fotografando-os e anotando passo a passo seu cotidiano e suas reações. Refazia depois os itinerários de cada um, sozinha, tentando imaginar a existência daquelas pessoas e escrevendo biografias imaginárias para elas – expostas, depois, junto com as fotos.
Maria é só um exemplo dos tantos personagens que levam estas características tão peculiares do universo de Auster. São tantos personagens com esta predisposição a aceitar o que for que o acaso lhes oferece – e a participar de joguinhos intrincados, fugas da realidade – que estas invenções típicas de Paul Auster, com seu tom existencial e irônico, seu universo pautado por regras tão rígidas quanto ilógicas, acabam se tornando um lugar comum, tamanha a quantidade de vezes que são utilizadas.
É com esta série de coincidências aceitas com tanta naturalidade que o narrador, em um barracão na floresta, durante os poucos dias de que dispõe antes da chegada do FBI, tenta reconstituir a cadeia de coincidências que afastaram seu amigo e o levaram a um destino trágico – por sua única escolha, entretanto: nem tudo que o “acaso” lhe oferece precisa ser aceito por ele, mas ele não titubeia, toma tudo como uma espécie de cruz a qual não pode se furtar a carregar.

O que poderia parecer a descoberta de um personagem perdido em um ideal de vida, se transforma na casuística concessão ao acaso. O acaso guia a vida de Ben Sachs ao seu bel prazer e ele se deixa levar, achando que as “pistas” que encontra pelo caminho são as provas irrefutáveis de que deve seguir por tal rumo; sente-se quase com em uma “missão”, uma causa nobre – tremendamente boba, na realidade – a guiar-lhe os passos, caindo em infelicidade, e achando que está fadado ao fracasso, irremediavelmente. Como se não lhe coubesse fazer de sua vida o que bem entendesse, mas fosse vitimado por tal sucessão de ações que lhe vão atingindo.

Ocorre, desta maneira, a criação de personagens pouco profundos, facilmente moldáveis aos desejos do “destino”, quase todos muito semelhantes em seu apego a aceitar o que lhe é impingido e a julgar que as rédeas de suas vidas não estão em suas mãos, mas que devem ser passíveis para aceitar – para o bem ou para o mal – o que o “acaso” [oh, este deus maléfico!] lhes oferece.

Alessandro Garcia

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