Na década de 70, praticamente duas vertentes do cinema norte-americano tentaram traduzir a necessidade dos negros de se verem refletidos na telas. Por um lado, a produção de películas protagonizadas por atores como Sidney Poitier, Bill Cosby, Flip Wilson e, mais tarde, Richard Pryor, propunham uma mistura de comédia e drama sério que convenientemente tinha um ator negro em um dos papéis principais – e que se mostrava um produto mais palatável aos grandes (e brancos) estúdios (a exemplo do drama anti-racismo, bastante convencional como Adivinhe Quem Vem para Jantar? (1967), com Poitier) – e sugeriam que era possível aos negros serem plenamente aceitos pela sociedade geral. A realidade, no entanto, era bem diferente, uma vez que protestos raciais pipocavam em várias cidades dos EUA. Os Panteras Negras, com um grande número de seguidores nas áreas pobres das grandes cidades, pregavam a revolta armada. Apesar da influência positiva dos filmes de Poitier na sociedade, eles simplesmente não refletiam a vida da maioria dos cidadãos negros da época. Então, grandes artistas “black” como Funkadelic, The Impressions, Sly and Family Stone e James Brown começaram a produzir músicas contendo mensagens políticas, emolduradas por um irresistível balanço. As paradas de R&B provaram que a procura de “música com mensagem” estava em alta.
O que pareceu uma resposta a isto foram os filmes que produziram as músicas mais inovadoras, sem falar nos enredos, filmes negros em essência e que contrastavam com os filmes do cinemão Hollywoodiano – e, não por acaso, considerados filmes menores. O pioneiro foi o diretor negro Melvin Van Peebles, que realizou o revolucionário A Noite em Que o Sol Brilhou (197o), a primeira produção feita por um negro para os negros e cuja maior inovação era mostrar, sem pudores, o cotidiano da comunidade negra. Com o sucesso de seu filme posterior, Sweet Sweetback’s Baad Asssss Song (1971), os grandes estúdios perceberam que precisavam investir num novo público alvo – os negros. A primeira major a apostar na idéia foi a MGM, que produziu Shaft, em 1971, dirigido por Gordon Parks. Nascia a blaxploitation.
Não obstante, o enredo e elementos presentes nos filmes blaxploitation eram compostos por tramas de vingança, cafetões, tiros, drogas, máfia, sexo, corpos femininos voluptuosos e a melhor música funk e soul. Alguns dos grandes sucessos da época foram Black Mama, White Mama (1972), Coffy (1973), Bucktown (1975), Friday Foster (1975), todos estes não por acaso protagonizados por Pam Grier, a musa da época e do gênero que, em 1997 veio a ser a protagonista de Jackie Brown, uma tentativa de revival do gênero, de Quentin Tarantino.
Em 2000, houve outra tentativa de beber na fonte do gênero, com a refilmagem de Shaft pelo cineasta John Singleton. Agora, em Quatro irmãos ( Four Brothers, 2005), eis o mesmo diretor tentando emular o espírito da época novamente.
O clima do gênero logo se impõe a partir das primeiras cenas. Em uma Detroit tomada pelo branco gelado a emoldurar suas ruas, Bobby Mercer (Mark Wahlberg) vem dirigindo seu carro detonado e antigo de volta pra casa, ao ritmo cadenciado de uma guitarrinha wah-wah ao fundo. É só a primeira de uma série de outros elementos que se sucederão em aparições e mostrarão claramente a intenção do diretor de reproduzir aquele gênero. O que surge em seguida são detalhes de figurinos e maquiagem – costeletas, mullets e grandes bigodes – e mesmo características técnicas, como a quantidade exagerada de zooms e outros pequenos vícios do período. Lógico que não é preciso se emocionar à grande. Ainda que o clima do início do filme conspire para que se pense que um retorno ao gênero está sendo produzido na sua forma mais roots, logo somos trazidos de volta ao velho politicamente correto, que procura equilibrar as cotas raciais, mostrando os irmãos Mercer – protagonistas dos filmes – como dois brancos e dois negros. Em algum momento de suas vidas, o invocadinho Bobby Mercer, Angel (Tyrese Gibson), o pai de família Jeremiah (André Benjamin , do OutKast) e o projeto de roqueiro Jack (Garrett Hedlund) foram adotados por Evelyn Mercer ( Fionnula Flanagan).
Como nunca deram certo nos diversos lares que Evelyn tentou arranjar para eles, acabaram sendo criados por ela e devotando-lhe todo o mesmo carinho filial que os faz se reunir anos mais tarde para enterrar a mãe morta, assassinada em um mercadinho do bairro.
Eis-nos de volta ao rascunho de blaxploitation: a conversinha nem um pouco cortês de um sempre indignado Bob Mercer – Wahlberg exibindo um semi-mullet –, Angel e o tenente Green ( Terrence Howard) e seu colega, o Detetive Fowler (Josh Charles), durante o velório de Evelyn, indica que, além de não ter qualquer confiança e respeito pelas forças policiais da cidade, os irmãos Mercer não contam nem um pouco com a probabilidade da polícia em descobrir os assassinos de tão doce velhinha. Assim, é neste momento de tensão em que se pronuncia a certeza de que os irmãos vão “dar trabalho à polícia”, fazendo justiça com as próprias mãos.
Não só neste, mas em diversos outros momentos – em especial na apresentação que Green vai fazendo a Fowler dentro do carro, instantes antes de comparecerem ao velório de Evelyn, sobre o temperamento e característica de cada um dos irmãos – ficamos sabendo que, não obstante o fato deles terem sido pequenos projetos de marginais cujas vidas se tornaram melhores pela adoção da velha senhora, os Mercer continuam com uma índole que não os diferencia muito dos criminosos a quem vão caçar a tiros. Podem ser tão cruéis quanto os próprios, e a continuidade do filme vai mostrar isto – em um ótimo trabalho de caracteres bem delineados pelos roteiristas David Elliot e Paul Lovett.
Em nenhum momento soa forçada irmandade dos quatro. Um bom tempo do filme é empregado para reforçar esta sincronia entre os quatro – os personagens, com sua fraternidade soando verossímil demonstram como os atores estavam bem entrosados -, com as constantes “tirações” de sarro entre eles, tão típicas entre irmãos.
É neste vai e volta de sensações, e que acabam por fim, dando a sensação mais do que comprovada de que o diretor desejava prestar um tributo ao gênero, que o filme vai se desenvolvendo com uma trama mais ardilosa do que a primeira vista se presumiria. Ao parecer que tudo descambaria para a ambição desmedida capaz de sacrificar mesmo a quem se ama, é que Singleton consegue uma reviravolta extremamente bem urdida, sem ceder a mágicas modificações de caráter ou revelações que não tivesse uma ordem lógica pré-justificada.
Lógico que muito tempo é cedido para satisfazer aos fãs das cenas de correria, tiroteio, pancadaria, perseguição de carro (especialmente esta, em seqüência magnífica realizada com dois velhos carros numa corrida escorregadia pela neve), mas mesmo estas conseguem fugir do clichê.
O vilão Victor Sweet (vivido pelo ator Chiwetel Ejiofor, de Coisas Belas e Sujas ) mantém aquele ar de cafetão que nada teme e consegue tornar repugnante na medida exata seu personagem como o mafioso que impõe as punições mais humilhantes a seus subordinados.
Infelizmente com aquela necessidade de agradar a gregos e troianos, Singleton se viu obrigado a fazer uma simbiose do que seria uma tentativa de reproduzir o climão de um típico filme blaxploitation. Lógico que há méritos também em invocar o gênero e estes devem ser considerados. No final das contas, parece uma bela homenagem que, sem quedar-se à uma sisudez extrema ou uma muito arraigada ortodoxia, proporciona bons momentos de diversão.
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