Simplicíssimo

Do Emplastro de Lodo

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lôdo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não se contaminou de grego e onde é infreqüente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lôdo, subiu as encostas da ribeira sem afastar (provavelmente , sem sentir) as espadanas que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, mareado e ensangüentado até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a côr do fogo e agora a da cinza.
Jorge Luiz Borges

Conte-se. Entonteado, no início do dia- quando as mãos do sol começam a tremular nos montes- formava zigue-zagues nas ruas, sujos do lodo e das raias de sangue de seus ferimentos insentidos. O laranja do sol, ainda silente, aquecia as manchas no chão, tornando-as sólidas. Longas trilhas rochosas de suas secreções. Sim, que o lodo cinza era já parte de sua química, vagava pelos poros respirantes e unia-se ao seu suor, à urina, aos seus vapores. E foi então contando aos inertes humanos de sua chegada ali. Não que falasse: não o fazia, não no idioma local. Eram seus passos que fomentavam notícias, aquela espécie de pedra-barro de seu caminhar. E as notícias formavam as versões, e então as histórias, de sua passagem por ali. Andou entre os mecenas, padeiros, leprosos e beatas: toda sorte de gentes, em suas casas e ofícios, de olhos largos para o susto que o homem trazia.

Exprimia-se nunca de dor, só dos arrepios pelo lodo frio em sua pele arranhada. Lodo cinza e frio, sim. Sagrado, que o curasse num definitivo de sua peste. Com febre, tomava-se de mal aspecto, cambaleante, imprimindo no ar o cheiro ruim de suas feridas, e ele já delirava como louco, acreditando-se benzido pelo cinza. Placas do lodo e da pele escoriam-lhe, e lágrimas salgadas nasciam no rosto cru, quem sabe do trajeto árduo, da noite indormida, da fome e da sede. De um si mesmo que por tanta dor na alma deixou seu idioma para procurar terras novas. O porquê ninguém sabia. Em seu mapa, riscado na face, poucas e firmes palavras, guturais, pareciam sair-lhe da própria carne, arrancadas de seu silêncio. Poucos podiam ouvir sua voz, ou não entendiam o que dizia, apenas o choro sujo que turvava as vias locais, a horrenda imagem de sua doença, os odores de uma espécie inferior. Era do sul, de uma localidade inóspita, de uma aldeia virgem do belo, acreditavam todos. Trazia o mal àquela pátria. Veio buscar o lodo, derramar-se dele. Ou veio morrer ali, era o que se murmurava entre os cidadãos. Foi a atração e o espanto durante as horas, ou dias, ou meses. Ninguém sabia ao certo, que sua presença paralisou a cidade de seus afazeres por tempos, apenas por fitarem para onde andava o homem cinza. Seu destino era longínquo, feito em linha reta, em silêncio, sério de si.

Leproso, diziam. Abandonou-se ao vento frio e às rachaduras da montanha tortuosa, para buscar a cura, tomado pela fé e pelo desejo de viver e de morrer pelo lodo cinza. Era o que contavam nas terras do sul sobre as terras do norte, dos emplastros de lodo. Assim que se tomou de coragem e de suas virtudes, calçou-se de boas sandálias, e vestiu a lã mais quente para chegar ali. Veio rasgando-se no trajeto, molhou-se das águas que abraçavam sua embracação precária, e chegou, enfermo de sua viagem. E trouxe as tristezas e dores consigo, e trouxe o paradoxo. Era o mais feio de todos os seres, mas algo de belo reluzia em sua face, talvez a busca pelo sagrado, um jeito seu que apaziguava as mentes quando o viam passar, a cada manhã.

Era o que fazia, o que viera ter dali: encontrar-se com a entidade que reinava no círculo acima da montanha. Todo dia percorria a cidade, e andava um pouco além, lento pelo cansaço e pela fraca saúde, e parava-se frente ao animal construído entre as pedras, balbuciando sons de seu idioma, fossem mesmo pregações. Mirava em súplica, chorava em desatino, um dia e o outro, sempre na entrada do sol, quando muitos ainda dormiam. Postava-se ereto, até cair, quando caía também a noite.

Era tão intenso seu desejo que ele tomava as formas da figura, unia-se a ela em alguma harmonia impossível de contar. Quem passasse, veria uma vertigem de imagens animalescas, mas belas na inteireza do conjunto.Ele, como nascido ali, encontrara sua existência, no recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a côr do fogo e agora a da cinza.

Betina Mariante

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