Pois hoje é daqueles dias que acordo dizendo que não estou inspirada, que nem vou escrever. Aquela sensação de que o acordar saiu desajeitado, que o ideal seria acordar de novo, justamente pra acordar com inspiração. Falta de inspiração. Mas acordo, desse jeito mesmo. Vem a sensação de que há uma página esperando por mim, com inspiração ou sem. Não importa mais. Escrever torna-se parte dos dias. Pungente, a sensação. Me remexo, resisto, me atormento. Não, não vou escrever. A falta de assunto é o que inicialmente me paralisa, a falta de um artifício. Um bom artifício. Falta de inspiração. E o ritmo, que hoje estou até mesmo sem ritmo. Lembro de assuntos. Quem sabe. Não. Escritas já escritas, tempo faz. Nem assim. Coisas que um dia gostaria de ter escrito, mas não fui eu, e já existem em algum lugar. Não são mais minhas. Nunca foram. No dia em que acordei com a idéia, mas sem inspiração, alguém já escreveu. Inspirado.
Falta de Inspiração. Não sei mais. Falta de inspiração é falta de assunto? Ou de ritmo? Ou de vontade? Ou do genial? Não importa. A escrita, agora, quer sair. Quer ser. Movimento caótico de palavras, se empurrando na porta, querendo sair. Furando a fila, pra passar na frente. Explicam às palavras que hoje não é dia de espetáculo, querem mesmo assim. Se posicionam em fila desordenada, prontas pra voar à folha, assim que abrirem a entrada. Discutem seus postos, uma quer cadeira no primeiro parágrafo, outra no último. Outra ainda, mais tímida, prefere os parágrafos do meio, "onde tiver lugar, tá bom", fazendo ares de sem graça. Mas está na fila, quer seu destaque. Uma, mais orgulhosa, chantageia: "se eu não for a primeira do segundo parágrafo, então não vou", ao que retruca outra "não vai, então, que daí sobra lugar". Sem chefe, disputam postos, hierarquias. Ao bel prazer. Prontas pra correr à folha, nem mesmo planejam quem fica onde. "Vai ser onde tiver lugar". Substantivo com substantivo, conjunções emboladas lá no meio da fila, verbos organizados num grupinho, só olhando a cena. Decidiram não ir. Pedem pelos verbos, tentam persuadí-los, argumentam. Não vão. Fazendo charme. Adjetivos vaidosos organizam-se em time pelos parágrafos, esses sim tem seu lugarzinho, que sempre cabe um adjetivo. Mas os verbos…? Sem eles, os adjuntos adverbiais também não vão. "Quem sabe a gente vai, então?", tenta um, mais diplomático. E a pontuação? Exclamações, interrogações, reticências, vírgulas. Pontos finais, vários deles. dois pontos, travessão. Estão numa fila separada, não se misturam muito. Acabam se encaixando, sempre tem lugar. Apertam-se, se for necessário. "Será que vai ter pontuação suficiente pra todos os parágrafos…?", pergunta uma das palavras, com pose de chefe. E assim o rebuliço vai. Querem passar, essa é a questão.
Inspiração, ritmo, nada disso. Querem seu lugar, querem sentar-se confortavelmente num dos parágrafos. Constituir o texto, fazer parte. "Senhorita, pode passar pro segundo parágrafo, por favor, que esse lugar estava reservado pra mim?", diz um dos verbos, com certa empáfia. A folia da fila. A confusão dos lugares, já aberta a entrada. Acomodaram-se onde dava, entraram em empurrões. A primeira palavra do primeiro parágrafo, e a última do último: as mais disputadas. Palavras e pontuações acabaram misturadas nos parágrafos do meio, aglomeradas sem critério, num texto inusitado. Tinha palavras que não se falavam havia muito tempo, reencontraram-se. Fofocas, olhares, caretas. Mas estavam ali, tinham seu lugar. Algumas sobraram na fila. "Está lotado, senhora. Tinha gente aqui desde cedo, hoje". "Fica pra próxima…", repetiam-se, em tom de desconsolo. "Não foi dessa vez", repetem algumas, dando de ombros. Também as injustiçadas, manisfestando intensa auto-comiseração, saem caminhando em passos lentos, balançando a cabeça. Tentarão em próximos textos, quem sabe chegando mais cedo. Ficam fofocando que algumas classes acabam privilegiadas, como os adjetivos, que sempre se ajeitam aqui ou ali. Quem entrou, entre palavras e pontuação, já se acomodou. a maioria conseguiu lugar, mas houve quem tenha sentado no chão. Pode até passar meio desapercebida, mas já tem um texto no currículo, ainda que sem cadeira específica.
E assim se monta um texto. Sem inspiração, vezes. Sem ritmo. Na confusão das palavras, que entram sem avisar, procurando espaço. E se acomodam, se conhecem, se misturam, entre uma vírgula e outra. Pontuações desavisadas aparecem aqui ou ali, em ordem desordenada. E, independente da nossa vontade, chegamos à última palavra do último parágrafo. Essa tem lugar de destaque. Mas quem aparece mesmo é o ponto final, que encerra a linha. Discreto, pontual, decidido. Ocupa seu lugar, sem dizer nada. Senta-se, e acomoda-se confortavelmente. Faz-se necessário. Interrogação, exclamação e reticências ficaram espalhadas pelo texto, meio perdidas, puxando assunto com as palavras. Numa lógica própria, escreve-se o texto.
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