Simplicíssimo

Penumbra

Homem alto. Impressionista. Feito de traços, pinceladas distintas, curtas. De longe, imagem composta. Belo, de claridade volátil. Turvo, quando visto de perto, em toques de cor pura. Figura sem nitidez. Aproxima-se, e o que se vê são borrões, lado a lado. Semblante em desalinho. Parece feito a olho, num relance. Como alguém que passou por ali, em passos rápidos. Num breve vislumbre, como uma notícia de seu caminhar, é pintado pelo artista de rua. Transitório, seu estado natural. Pontos vivamente coloridos, mosaico de tintas irregulares, vibrando como refletidas na água. Matizes intensos adornando sua identidade. Visto de longe. Impermanente. Os olhos claros irradiam confiança, brilham em azul céu, refletem luz na sala. Até as sombras abertas, de cores acesas. Move-se com agilidade, rastros velozes, tomados de sensações. Inconstante no vestir. Arrojado, polido, vezes um descaso. Tem uma penumbra, quase apagada. É ele.

Belo, assim. De longe. Foi como eu o conheci. O encanto era à distância, a tinta de seus traços rabiscados no papel. As palavras nuas. De longe. Escrevia cartas, como um personagem de si. Definia-se: alguém de compleição magra, porte alto, passos firmes, cheiro de homem, sem perfume. Sabia o que dizer. Por onde andar. Ele sabia do seu cheiro, vangloriava-se, até. E seus dizeres, com a volúpia de luzes fortes. Os envelopes vinham com selo escolhido, endereçados a mim. Impecável em sua luxúria, fazia da atmosfera de suas cartas uma intensa alcova, onde me deitava com suas palavras.

Enfeitava-me para escrever, com os mais belos vertidos e jóias. Sentada na cadeira da escrivaninha, respondia aos seus apelos. Tantos enfeites em vão. Depois, o tinteiro me trairia, despindo-me nas listas da folha, e já nem vergonha havia mais. Ele, de longe, rasgava os envelopes com movimentos descuidados, como se assim fosse tirar meus trajes íntimos, para logo enxergar o que guardava cada nova carta. E sempre, e cada vez mais, o silêncio permeava nossos diálogos, escondendo, em si, palavras não ditas. O corpo aquecia, e a figura turva, desenhada por sua caligrafia, me fazia suar. Não havia espaço para palavras, frases, parágrafos. Nus, registrávamos nosso enlace quando passava o homem do correio, que nem imaginava carregar tantas fantasias. Impressões.

A chegada de um selo diferente trazia mistério, nuanças intensas, cheiros mais fortes. Sua figura era mais nítida, as pinceladas compunham o belo homem, escrito na carta. Tinha uma robustez, e seus braços fortes, descritos em tinta preta, me seguravam de todo. Insinuávamos um ao outro nossa performance, e aquele papel de textura áspera carregava nossas mentiras, em pinceladas curtas, cores vivas. Exclamações, interrogações, expectativas, e o desejo de ver de longe. A figura por inteiro, a claridade dos olhos azuis, o abraço de conforto no final do sexo. De perto, o medo era o de perder-se a nitidez, um pavor de que ele se tornasse em borrões, lado a lado. De que se derretesse o homem de passos firmes, e a realidade fossem manchas compondo seu corpo.

Entre um recém e outro, isso me passava pela idéia. Esquecia, ao ler nova carta, encantadora, voluptuosa, em carne viva. O suor escorria-lhe, também, eu via as manchas na folha. A caligrafia reta que se entortava, quando a excitação chegava ao ápice. Palavras indefinidas, letras mal cuidadas. Assim anunciava seu prazer.

Tornou-se hábito. Desnudava-me em nossos lençóis, já escrevia às pressas pra levar ao correio, chegar nova carta, e a resposta. Ardente, queimando as mãos do carteiro. Corríamos num frenesi de palavras soltas, de uma ausência de frases. Pontuações, revelações desconexas. Folhas vazias, quase. E nós, ali. Cada um em pontos diferentes do mapa, muito distantes. Em poucos meses chegaria. De navio. Que eu esperasse. Cartas e cartas. Ele, nítido e fugaz. Eu, ali. Esperançosa de sua visita. Mas já com saudades dos envelopes, dos selos, de nossos corpos entrelaçados pelo ir e vir do correio.

Ele ansiava pelo bilhete de partida. A cada semana, nenhuma novidade. Caminhava até o ofício, o bilhete não chegara. Sem previsão. Disfarçávamos, balbuciávamos banalidades, mas a conversa corria à nossa fúria, e lá estávamos. Enxarcados. Eu, de certa forma, alegrava-me, a cada negativa informada pelo burocrata que devia entregar o tal bilhete. Mais cartas. E tantas. De longe, era o homem alto, magro, claro, sem perfume, me tomando em seu corpo.

De perto, quem saberia?

Um bilhete que não chegava, cartas de perdição, um desconhecido. Eu poderia antecipar seus passos, às quintas-feiras pela manhã, quando ele caminhava lentamente ao posto para buscar notícias de sua vinda. Às quintas-feiras. Praticamente caminhava ao seu lado, tamanha a proximidade de nossa distância. E se eu fingia sofrer pela falta do bilhete, a malícia de nossa correspondência me encorajava a esperar.

Numa das quintas-feiras, o homem do ofício fez um olhar misterioso, abriu a gaveta, puxou o bilhete. Ele, incrédulo, paralisou-se. Sorriu. A caminhada de retorno a casa foi nova, de ar respirado até o fundo. Veria aquelas paisagens pela última vez. Veria a si mesmo pela última vez. Digo, seu personagem. O das cartas. Escreveu-me novamente, anunciando a novidade, feliz. Estranhei, parecia ríspido, objetivo, sem adular-me a todo momento. Eu, caprichosa, entristeci. Comunicou-me, como notícia.

Numa tarde abafada, quando recebi a carta, senti algo no peito. Uma angústia, um aperto, coisa assim. A imagem nítida, à distância, parecia desmanchar-se. Sentia as cartas derreterem-se, as palavras dissolverem-se como tinta fresca, escorrendo pela folha. Borrões, lado a lado.

Sabia de sua volta. Data, hora. O navio deveria partir em tarde ensolarada, de um dia da semana. De novo, paisagem impressionista, cheia de claridade, luz, cores distintas. Belo, suntuoso navio. De longe. Ele, passos rápidos e firmes.

Por alguns dias eu não receberia cartas, notícias, nossa alcova restaria no vazio. Por alguns dias. Esperaria. Esperei. O navio, aquele, não chegou. Nunca nos vimos. Permaneceu na pintura, em pinceladas curtas, paisagem composta por quem vê à distância. Vez, me surpreendi com a tela exposta num parque. Pelo artista que o pegou de relance. Homem alto, magro, cheiro de corpo, pintado a traços. Era o seu passo, sua penumbra, aquela claridade assombrosa com que registrava o prazer. Aquele, das cartas.

Betina Mariante

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