AURORA
– por Rodrigo Monzani
Prólogo
– Ai! Pobre despedaçado! Não és nem mesmo as ruínas que
percorrestes em tua juventude.
A prece da decifração. Impulsionado por este tipo de esperança, cujo desígnio frequentemente escapa seja por intervenção da providência moldada nas inteligências angélicas, seja por me recusar a aceitar o mundo como o deserto abismado em fogo e perdição, me predisponho a dar o testemunho da vida e da verdade do mundo através da palavra escrita, esta única entidade potencialmente capaz de criar vidas e verdades que persistem para além de todos os mundos e para além de todo o resto.
Embora hoje eu apenas envelheça como o mundo, em retrospecto percebo o quanto é difícil acreditar que uma mente empedernida como a minha tenha lançado tamanha luz sobre os terríveis e miríficos acontecimentos que estou prestes a narrar, embora tenha sido vã minha tentativa de descobrir onde, afinal, reside este medo que sinto ao escrever tão longe e tão incógnito de tais fatos. Talvez seja meu desejo de salvação, talvez seja a mera necessidade de compreender-me, mas certamente tem algo a ver com o infinito poder conotativo da escrita, adormecida, perdida e indisciplinada entre minhas idéias e teorias que, terrivelmente, me perturbam em busca de alguma interpretação para si, através da contextualização.
Assim, as contextualizo com mãos trêmulas (não sei se pela culpa do pecado ou pela idade que hoje me precipita na morte), embora o silêncio me pareça ser a única atitude plausível e a estreita saída para evitar um discurso repleto de blasfêmias, estejam elas ocultas nas linhas deste manuscrito, ou submersas nas lendas das grandes epopéias, nos livros sagrados, nos sonetos e quartetos e bulas e cartas e relatos e confissões que tanto me socorreram através destes anos e que, estranhamente, tanto me oprimiram na busca da salvação (do quê? me perguntaria um inocente a tentar me prover de consolo e conforto) de mim mesmo, digo com receio.
A história não remete à terras que habitei há decênios, mas sim àquelas que habitaram em mim, tamanho o número de lugares pelos quais passei (e hoje não me lembro de muitos) e tamanha a influência que alguns poucos exerceram em minhas faculdades imaginativas, embora dizer isso possa parecer apenas o reflexo de uma das consequências vergonhosas das personalidades fracas e inconsistentes, assim como o meu próprio desejo de salvação.
Vaguei pelo mundo entre charlatões, falsos doentes, maltrapilhos, leprosos, sodomitas, infiéis, mercenários, epiléticos, esmoleres, paralíticos, perseguidos, vigaristas, velhacos, simoníacos e traficantes, e embora a cultura que pude purgar de tais companhias tenha-me sido vital naquela época (algo como arrancar comida de gente temente a seus santos que, afortunadamente, se lembrava dos conselhos às esmolas), pressinto que esta vergonha e loucura melancólica que sempre acompanham a laia destes meus antigos comparsas hoje em nada me atingem, a não ser pelos vícios que ainda cultivo como várias rapinas de minha alma.
Às ruínas de minhas próprias ruínas, é a isso que hoje me assemelho, mas se é assim, certamente é devido ao Anticristo ou qualquer uma destas forças diabólicas que parecem exercer ascendência salutar sobre os caminhantes da floresta chamada destino, e não às veredas da própria floresta e de seus habitantes. Neste meio de tristeza, os nomes (assim como espero que aqueles que vierem depois de mim não se importem com o inevitável anonimato destas linhas) em nada importam, mas apenas aquilo que desmensuradamente cultivamos através da caminhada e a maneira como conseguimos raciocinar quando o cansaço de nossos pés nos faz sucumbir, sem nunca atravessar a floresta até seu fim. E, se me permitem a analogia pobre e grotesca, hoje raciocino como alguém que tem uma corda no pescoço, sem sustento algum sob os pés mas que, incapaz de morrer, gira infinitamente no vácuo, sem poder gritar entre uma legião de demônios a minha volta. E é através deste raciocínio que tiro minhas palavras, estas palavras, supondo que exista um sem número de histórias que, desta mesma forma e por outras almas obscurecidas e atordoadas como a minha, possam ser contadas, mas agora não há nenhuma outra.
Esta é a única história que devo e poderei contar.
I
– Revives teus pensamentos, já que não tens nenhum amigo ou
companheiro para as tuas sete solidões.
Intemporalmente às minhas certezas e receios, hoje relembro que as inseguranças que sentia quando jovem eram, na verdade, curiosidade, mas ainda nestes dias tenho a impressão que tal virtude tende a desaguar em alguma das paixões de uma alma insipiente, alimentando- se tão somente de desejos e daquilo que chamo e agora sei ser nada mais, senão, que a ânsia mórbida pelo perigo. Escrevo isso sem a preocupação de atualidade de tal sentimento. Era isso que se esgueirava pelos silêncios desagradáveis de minha juventude e tanto eu buscava afugentar meus monstros (que meus sonhos engendravam tão gloriosamente) quanto poderia ser mortal e imprudente tal empresa a um jovem. Se talvez tivesse apenas me nutrido da razão, não poderia compreender aquela energia inexaurível que trazia em grandes provisões, sempre fiel as minhas fontes de tal tipo concupiscente de personalidade.
Mas como me orientar até aqueles dias longínquos sem que os nós do esquecimento me confundam? Como descrever a sagacidade daqueles tempos, se hoje o que me resta são tão somente seus traços e signos, e alguns signos de seus signos? Decifro, desta forma, todos meus enigmas para me fazer compreender e, principalmente, para me libertar de antigas obsessões, mas esqueço do próprio enigma indecifrável que sou. Há uma misteriosa sabedoria pela qual a paranóia obsessiva pode ser descrita pelas mesmas palavras que caracterizam a tranquilidade mais tênue de um santo coração, palavras análogas nas quais a morte se equipara à vida, a dor ao prazer e a maldade à paixão. Se somente por um instante a sabedoria de tais palavras me abandonasse, morto estaria há tempos, pois, se hoje vivo, é pela beleza que arde diretamente de minha dor. E que labirinto construí para mim! O fio que hoje utilizo para me mover dentre estes muros não é, certamente, o fio moral, mas o do conhecimento que me permite matar os touros deste labirinto que sou, de negar a vida e esmagá-la sob seu próprio peso, desatrelar, livrar, descarregar o que ainda vive e percorre, cambaleante, os corredores que tenho na mente; e então me reinventar livre do monstro que me tornei.
Armamos para nós um mundo em que podemos viver, superfícies, causas, efeitos, inércia e equilíbrio, de forma que o destino nunca me foi argumento de extraordinário vigor, apenas o conhecimento que nele cultivamos, uma vez que no destino se encerra o erro de algumas maldições. Mas, infelizmente, o conhecimento não supera tudo, e em meu caso, somente confere um valor de resgate concêntrico a minha própria subjetividade, fazendo-a vibrar a cada memória de insatisfação pelo que fiz em minha vida, iniciada a oitenta e oito anos, hoje já quase gozando da divina loucura dos centenários à beira da eternidade escura.
Nasci e cresci na pobre província de Pádua que sempre me pareceu suspensa acima da realidade, no início do século XIV. Filho de pai pedreiro, nunca conheci minha mãe fora de seus relatos de inflamada doçura e compaixão. Talvez por isso a memória desta mulher que nunca vi ainda brilhe como a luz mais bela de seu sorriso benevolente que criei em minha imaginação, algo somente comparado ao poder salvador das vidas dos mártires.
Embora naquela época, e ainda hoje, mesmo os inquisitores se surpreendessem com as heresias de um papa eternizado como Clemente V, as mortes na fogueira não nos acudiam no serviço, mas apenas a morte da aristocracia que emergia dentro da própria igreja, como do desprezo emerge o riso do ridículo. Bruxos, magos e ateus não mereciam lápides (poderiam eles querer mais que a purificação da fogueira?) e o que mais, além delas, um pedreiro como meu pai poderia fazer? Ganhávamos o necessário para viver a continuar amaldiçoando a igreja e seu braço secular, construindo as lápides de clérigos tão puros e inodoros quanto uma gota de água numa jarra de vinho.
As lápides ganharam certa margem dentro dos cemitérios santos, e cada vez mais ganhávamos menos dinheiro por tal reconhecimento. Os contornos arabescos e góticos de meu pai na pedra cinza, herança de seu eterno retorno à cultura de todas as culturas, eram bem vistos pelo papa, assim como a pobreza do povo santo, mísero e maltrapilho como o próprio Cristo. Sobre um povo pobre se exerce maior influência, uma vez que lhe era dado (e ainda hoje) somente o latim vulgar das regiões mais baixas da Europa como conhecimento, e desta forma se condensa sob as turvas asas da santa madre igreja as forças de uma qualquer possível revolta.
Contávamos, naquela época, com um aprendiz, e somente a ele permito-me nomear (ainda que de forma fictícia) em minha nostálgica e imprudente narrativa. Alermano Di Pietro foi, além de artífice da pedra, um grande e bom amigo e, confesso ainda hoje com admiração genuína, que sua amizade me fascinou com a força necessária para reconhecer nele um comparsa para meus planos de liberdade. A singularidade daqueles dias me incutiu uma força maior que a própria fatalidade de meus atos que se seguiriam, ocultos e obscuros como um corvo que olha com olhos estáticos para a presa agonizante, paciente e certo que a satisfação, embora tardia, é ainda uma satisfação. Mas não me precipitarei como os inquisitores, que não obtendo uma confissão sadia e pura dos desgraçados perseguidos, utilizam a tortura física e mental para atingirem mais rápido o fim de suas missões. Tentarei antes reviver a atmosfera que nos envolvia naqueles tempos e os motivos que me levaram a atos tão cruéis de tantas mortes e tamanha carnificina.
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