Simplicíssimo

Aurora (XI)

XI

– Nem verdades, nem mentiras são tuas

Naqueles dias distantes, minha tenra idade provia o mundo de surpreendentes marginalias, e um cenário ao avesso, em meio àquelas companias, se delineava em relação àquilo com que se habituaram, durante os anos, os meus sentidos. Porém, antes de nos encontrarmos com a caravana que rumava à lápide de Vicenzo Locci, minha companheira, uma vez mais, surpreendera-me, agora ao sacar de suas provisões pessoais um mapa com ricas iluminuras. Era realizado em vellum finíssimo, pergaminho oriental de valor proporcional a sua raridade e beleza, mas a princípio me pareceu ser um pedaço bem cortado de algum tecido decorativo, já que não havia nada a cobrir sua superfície, nenhuma escrita, nenhum desenho, nada mais além de uma brancura revestida de dourado numa nudez homogênea e virginal. Eis que a mulher, então, sacou também um fino estilete que ganhara num de nossos encontros casuais com os traficantes, além de um pedaço pequeno de pedra-pome que trazia amarrado ao pescoço de seu cavalo por um barbante esverdeado e grosso. “- Este mapa nos ajudará a encontrar a trilha dos viajantes ao túmulo de Vicenzo Locci.” – ela me disse, manuseando com habilidade o estilete.

Estranhamente notei que, somente naquele momento e após tantos dias de viagem, ela não usava rédeas para galopar seu corcel, nem mesmo o segurava em sua crina, restando-lhe não somente uma, como aos cavaleiros convencionais, mas as duas mãos para manusear livremente o que bem entendesse. “- Não vejo um mapa, onde estão seus desenhos?” – olhei perplexo para aquele tecido branco e fino, totalmente imaculado. Ela começou a lixar a pedra-pome com o estilete vagarosamente, raspando um pó arenoso que se perdia ao vento, mas ainda assim conseguiu reunir uma boa quantidade sobre o pergaminho. Então, espalhando aquele pó suavemente com os dedos sobre a superfície do tecido, um desenho ganhou vida como que vindo do mundo das idéias, diretamente de sua mente para o papel. Era realmente um mapa, confuso para mim, mas muito belo e artístico e quando vi o trabalho inteiro, não pude conter um grito de admiração. “- Este é o mapa mais estranho e belo que já vi!” – alardei enquanto o galgo se assustava com meu tom de voz anormal. “- Então já vistes um mapa? Pois este é especial.” – ela respondeu, limpando dos dedos canhotos o restante do pó da pedra- pome. “- Sim, é especial porque é muito belo.” – disse enquanto me aproximava para pegá-lo com o máximo cuidado. “- Porque é belo e porque retrata infinitas regiões, como jamais houve, há ou haverá outro mapa que o faça.”

“- Mas como saber se é verdadeiro?” “- Às margens do discurso da verdade, sempre se desenrola o discurso infernal da mentira, são lados opostos de um mesmo mundo e de mesma realidade. A humanidade inteira deixou-se e deixa-se enganar por estas interpretações mentirosas, o que me faz pensar que, se não são as verdades aqui tão bem retratadas, são nada menos que as suas melhores mentiras.” “- E do que nos serviriam boas mentiras? O que as torna diferente das más?” – interroguei-lhe. “- A verdade fundamental não se emprega através de interpretações, símbolos e signos, mas somente através de conceitos. A prática, sabeis desde agora, caríssimo, em sua realidade, não é verdadeira como os conceitos, mas é natural, e a natureza é feita, realizada e cristalizada através de nada mais que suas próprias heranças passadas, e assim, o que passou e antes era verdade, hoje, ao não acontecer mais, se torna uma boa mentira, que eficaz se torna na procura da verdade em sua perfeição. As más mentiras confundem, mas estas aqui retratadas” – e agora ela apontava o mapa em minha mãos, – ” nos são fonte de artíficios que, embora irreais e portanto mentirosos, nos levarão a testemunhar a verdade sem disfarces. Sem as boas mentiras, não haveria as interpretações, mas apenas o senso comum, que uma vez único, tornaria o mundo cenário somente do bem, ou somente do mal, não havendo…” e aqui a interrompi, excitado que estava com minha constatação, e disse: “- a necessidade de salvação, pois sem o bem, não há mal e vice-versa.”

“- É difícil”- ela disse: “- conferir um valor de resgate ou até mesmo prometer a reconciliação entre a verdade e a mentira oferecendo para ambas fundamentos comuns. Filósofos afirmavam que a verdadeira fórmula do materialismo não é “Deus não existe”, mas “Deus é inconsciente” e isto não deve ser confundido com a sua inexistência, mas há de se pensar que o “inconsciente é Deus”. O ‘Deus é inconsciente’ aponta para a falsidade fundamental que fornece a unidade fantasmática de uma pessoa: o que encontramos quando vamos buscar o núcleo mais profundo de nossa personalidade não é nossa autonomia, ou a verdade, mas a falsidade primordial – todos nós, em segredo, acreditamos no grande Outro, e não em nós mesmos. Onde está nossa verdade, então? Sonhos como experiência de vida integral e atitudes de desespero melancólico se confundem sem verdade ou mentira: o que é a vida senão um sonho em vão, uma sombra pálida sem substância? (e essa substância penso ser entendida como nossa autonomia, no caso desta linha de reflexão, entendida como a ausência de autonomia). O ‘inconsciente é Deus’ significa que a verdade divina reside na profundeza inexplorada de nossa personalidade: um grande sistema de raízes que, escondido, nutre a consciência e a noção de autonomia humana. A vida sempre me pareceu ser como uma planta que se nutre de seu rizoma. Sua verdadeira vida é invisível, oculta mentirosamente no rizoma (…) o que enxergamos é a flor, que é passageira. O rizoma permanece.” – ela concluiu, me permitindo dizer: - A mentira fascina quando já não se tem a força de compreender a verdade no seu interior… Ela meditou por alguns breves instantes, olhando para o horizonte com o mapa agora nas suas mãos e, com seu fino fio de voz, declarara: “- Ilusão da dignidade: a conclusão inevitável é que, com a mentira, não se trata de perdemos a verdade, a dignidade e a liberdade – na verdade sentimos muito, pois nunca as tivemos.

Se hoje temos meios que tornam imprecisa a separação entre o que conquistamos por conta própria e o que conquistamos devido aos níveis de substâncias químicas em nossos cérebros, talvez seja porque a primeira conquista (a por conta própria) apenas tenha sido possível com níveis diferentes de outras substâncias químicas em nossos cérebros. O que é falso, ou me parece falso, caríssimo, é a premissa subjacente ao tema: a noção de que o dever ético máximo é o de proteger o Outro da dor da mentira, mantê – lo na ignorância protetora como se o espírito pairasse indiferente sobre as mais diversas paisagens do interior humano, sobre a zona dos sentimentos da mesma maneira que nas metamorfoses de um animal irracional ou nas dimensões paralelas usadas na descrição da morte terrena, utilizadas por estes mediúcos que estamos tentando encontrar no caminho do túmulo de Locci.” Pensei o quanto as mentiras poderiam nos levar a verdade, mas não pude dizer algo melhor que: “- a verdade de meus dias, sua singularidade, talvez, está em sua mentirosa fatalidade.” “- Novamente estais blasfemando contra a existência de Deus?” – ela me perguntou “- Vejo que, para acreditar em sua existência benevolente, é necessário aceitar que seu bem só nos salva porque há boas mentiras acerca de sua existência e de nossa própria criação e, se somente existisse a verdade, estaríamos além do bem ou do mal, salvos por não não existir a necessidade da salvação.” Ela então olhou do horizonte para mim com ar de condescendência: “- Não existe maior mentira que restituir à verdade uma não-culpabilidade que lhe é própria e que muitas vezes se encontra sob a tutela de valores transcendentes, geralmente expressos, nos esquemas da cultura, por dualismos  como as oposições entre o sensível e o inteligível, o pensamento e a extensão, o real e o imaginário  que induz o recurso a outras instâncias, mais onipotentes (deus/ser/espírito absoluto/significante).

Confrontada com tais sistemas, a verdade parece permanecer perpetuamente em falta, ‘culpada a priori’ ou em estado de ‘mentira ilimitada’, uma maldição suspensa acima da realidade – e um frio anormal me percorreu o espírito quando minha curandeira dissera aquilo com olhos estáticos. Continuamos galopando vagarosamente por um longo tempo, enquanto ela analisava o mapa. Paramos numa clareira de capins altos dançantes com o vento, a neblina brumosa nos impedia a visão à distância e perguntei-lhe se aquelas condições do tempo não degradariam o pergaminho. “- Está protegido com uma fina camada de suco de limão. As interpéries não podem fazer muito.” – ela respondeu enquanto, tirando suas conclusões, olhava do mapa para a linha do horizonte avermelhado.

Rodrigo Monzani

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