XLII
– Não podes nomeá-lo, pois a regra ainda te escapa
Naquele fim de tarde, antes que pudesse dizer qualquer coisa, meu pai pediu-me que voltasse o mais rápido possível para o quarto e esperasse os acontecimentos. Disse-lhe tremulamente que havia encontrado no lado oposto à abadia, junto à saída dos lixos, uma única entrada de ar que certamente levava até as masmorras. Ainda abraçando-me e com os olhos úmidos e quentes, ele me ouviu:
“- Se conseguisse entrar por aquele túnel estou certo que chegaria até Alermano.”
“- Olha bem, ficas em silêncio durante estes dias. Dentro de pouco o golpe tomará corpo também aqui em Avignon. Acharemos Alermano quando a sede cair, e libertaremos todos os outros também. Não faças nada que possa te colocar em risco!”
“- Mas e as instruções de Barton? Do que me serviriam elas, e todo teu próprio esforço me deixando esta túnica pelo caminho junto às tuas mensagens nas lápides? Do que valeria o esforço de minha curandeira…”
“- Não te preocupes. Ela está conosco no navio, nas galerias. Atacará conosco. Vejas, tudo isto que fizemos, o fizemos bem, mas agora é hora de repensar as atitudes.”
“- Mas o golpe pode fracassar!”
“- É mais certo que tu fracasses sozinho do que todo o exército que se forma para o ataque.”
“- Mas pai meu…”
“- Cala-te e volta.”
Neste momento, o jovem monge já havia deixado o celeiro e o outro que ali conspirava me falou: “- Não aprendestes nada em nossas aulas, caríssimo? Ouve teu pai. Se te pegarem, te torturarão e entregarás a nós também!”
Era Barton aquele outro homem, e ao vê-lo novamente percebi seus gestos incontroláveis e a voz carrancuda, inconfundíveis.
“- Padre, estou me saindo bem! Nossas aulas me valem muito dentre estes muros, nem sequer desconfiam de minhas conversas e já sei a entrada das masmorras pelo ducto de ar! Sei também que a necessidade de se manter vivos os aprisionados liga as masmorras à sala de ervas, e que o herborista é um recluso. Se não conseguir entrar pelo túnel de ar, posso tentar usar o caminho do herborista, se o conhecer; e apenas poderei faze-lo devido às nossas aulas! Estou me saindo bem!”
Os dois se entreolharam. Barton puxou meu pai pelo ombro, ainda abaixado junto a mim, e os dois conversaram de maneira equilibrada.
“- Amanhã” – disse meu pai “- volta aqui, nesta mesma hora, mas desta vez venha só.” – e então parti a toda em direção aos quartos, com as forças já agora renovadas. Procurei por Rinaldo e o encontrei ajoelhado em seu quarto, recitando algum salmo de olhos cerrados, em latim. Quando me percebeu, se ergueu num salto:
“- Mas como?? Não te levaram, então?”
“- Correste!”
“- Salvamos-te, isso sim! O Carmelita avistou alguns guardas perambulando do outro lado e fomos até eles para desviar-lhes as atenções. Se aqueles uns percebem algo no celeiro, não somente tu, mas todos os outros três também seriam pegos e torturados.”
Fizemos silêncio.
“- Onde está o Carmelita?”
“- Não sei. Certamente em seu quarto.”
“- Pois deixa-me dizer: amanhã retornarei ao celeiro. Além do monge que já conhecíamos, aqueles outros dois eram padre Barton, meu professor no navio e meu pai.”
“- Teu pai, o que faz ele aqui??”
“- O mesmo que nós… O fato é que me reencontrarei com ele amanhã. Depois, reúne todos os noviços na gruta de sempre. Levarei o que meu pai me entregar e veremos o que podemos fazer.”
“- E hoje, o que fazemos?”
“- Vamos às discussões do Concílio. Nossa ausência não deve ser percebida.”
“- Certo. Agora volta senão te pegam. Prepara-te para o Concílio e desaparece com a sujeira da tua túnica.” Com as aparências refeitas, encontramo-nos, eu, Rinaldo e o Carmelita, no salão de discussão. Um dos discursantes alertara-nos sobre a breve chegada imperial e que seria de bom tom se todos pudessem fazer as honras para a sua chegada, na tarde seguinte. No mais, enquanto as conversações noturnas versavam sobre Deus e o mundo, o Carmelita pusera na cabeça que encontraria o herborista, e se esgueirou porta afora enquanto um confrade beneditino falava: “- Não tenho realmente medo de nada, a não ser o temor a Deus, que é único e totalmente perfeito, que não se parece com nenhuma das coisas que existem e com nenhuma das coisas que não existem, mas que pairam em nossos imaginários; não se pode descreve-lo usando a inteligência humana, pois nos deixamos levar por proposições mundanas nestes casos.” – a este ponto do discurso, vi o Carmelita, incógnito que estava com a túnica sobre a cabeça, deixar as bancadas e se voltar para a porta.
“- Do Único não se pode dizer que existe desta ou daquela forma, ou que não existe, podes nomeá-lo apenas pela dessemelhança porque não é útil chamá-lo de Bondade, Beleza, Sabedoria, Amabilidade, Potência, Justiça, pois seria o mesmo que determina-Lo do mesmo modo que o fazemos para o urso, a pantera, a serpente, o dragão, o sapo. Não importa o que dissemos: nunca poderemos exprimi-lo.” – e agora o Carmelita já passara por afora, por trás do trípode que lançava uma atmosfera aconchegante ao salão com suas chamas alaranjadas. E ouvimos: “ – Deus não é corpo, figura ou forma, não tem quantidade, peso ou leveza, não é alma, inteligência ou imaginação, opinião, pensamento, palavra, número, ordem, grandeza, não é igualdade nem desigualdade, é antes um espaço imensurável onde eu e você somos a mesma coisa, onde os opostos são complementares, onde o obscuro encontra sua luz e a luz sua obscuridade, e neste trabalho, se dá o perfeito.”
O Carmelita ganhara os corredores, avançava em direção à sala das ervas e continuou incógnito na noite esfumaçada pela bruma, insólito e intrépido nas feições, mas trêmulo, influxo e gaguejante na alma. Rinaldo parecia imerso no discurso do confrade que molhava as pontas dos dedos na água ao lado de seu púlpito antes de tocar a Sagrada Escritura, meditar durante alguns segundos a cada período e continuar: “ – Nós experimentamos frio e calor, luz e escuridão e todas aquelas coisas que são contrárias umas às outras. Às vezes o frio nos desagrada, e parece um mal comparado ao calor, mas às vezes faz muito calor, e desejamos o frescor e este fardo nos é sombrio, pois aparece-nos como uma contenda torturante, pois os opostos se quebram e lutam uns contra os outros!”
Tomado de entusiasmo, mexia as mãos como se fosse um menino, aquele eclesiástico, que ao falar de um peixe imita-lhe as formas, ou nomeando um temporal desenha redemoinhos no ar: “ – Racionais que somos, como podemos nomear o mal, que nos parece irracional? Quando se encontra a causa física de uma escolha irracional, deve-se eximir Deus da moção desordenada que a causou. E não é possível se deter, antes do caos primitivo. A causa extrema do mal deve existir, não sendo provocada por Deus e sob pena de se reinstalar o problema, não sendo provocada pela alma, também. Ora, de vez que a iniqüidade tem três causas: a injustiça, o ateísmo e o pecado, cada causa subdividindo-se em diversos tipos, cumpre distinguir as categorias de transgressores da religião; e o castigo imposto deve variar de acordo com o tipo e o grau da ofensa. Vejamos, primeiramente, o ateu convicto: talvez possua um caráter naturalmente justo e talvez tenha verdadeira aversão a vilões, e, por repudiar a injustiça, quiçá não seja tentado a comete-la; talvez evite a companhia dos injustos e busque os justos. Já outro ateu, além de acreditar que todas as coisas estão destituídas de Deus, talvez ceda ao impulso incontrolável de buscar o prazer e evitar a dor, e talvez possua memória prodigiosa e seja capaz de demonstrar discernimento. Ambos sofrem de um mal comum – o ateísmo – mas, quanto ao potencial de causar danos a outras pessoas, o primeiro é bem menos perigoso do que o segundo. O primeiro fala de deuses, sacrifícios e promessas sem qualquer inibição, e, ao zombar das santas leis, talvez haverá de atrair mais pessoas, se não castigado. O segundo tem as mesmas opiniões, mas possui o que chamamos em nossas terras de “talentos naturais”: esbanjando astúcia e artimanha, é o tipo de sujeito capaz de se tornar demagogo ou general afeito ao emprego de ritos secretos, e é também aquele que inventa as artimanhas dos chamados sofistas, a Cabala, o gnosticismo, neoplatonismos e demais variantes. Mas me pergunto: Nossos rituais não seriam secretos, também? Pode haver diversos tipos de ateus, mas nós mesmos produzimos distinções entre religiosos e fiéis… Proponho a abertura dos rituais a santa comunidade cristã, pois basta-nos de distinções!”.
Após o que me pareceu muito tempo, com o fim das discussões, saímos em direção à ceia. Na manhã seguinte, o Carmelita trazia suas novidades sobre o que descobrira do herborista e da sala de ervas, e à tarde meu pai me esperaria para uma entregar-me um estranho, porém providencial documento.
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