Simplicíssimo

Aurora (XLIV)

 XLIV 

– És também a linguagem das gemas  

Enquanto os monges se dirigiam ao coro, decidi que o Senhor me perdoaria se não assistisse ao ofício divino (aliás, o Senhor teve muito a me perdoar durante aqueles dias, não?) e me propus caminhar rapidamente pela esplanada, em direção ao outro lado do celeiro. Desci, saí pelas cozinhas, atravessei o cemitério: havia lápides mais recentes, e outras que traziam os sinais dos tempos, recontando vidas de monges vividos nos séculos passados. As tumbas estavam sem os nomes, encimadas por cruzes de pedras. 

O tempo estava piorando. Levantara-se um vento frio e o céu se tornou cinza. Adivinhara-se um sol que caía atrás dos hortos e do jardim de Mabillon e já estava começando a escurecer no oriente enquanto me dirigia para as forjas, costeando o coro da igreja e atingindo a parte posterior da esplanada.  Lá, quase ao pé da muralha, onde essa soldava-se ao torreão oriental do edifício, havia as pocilgas e os porqueiros estavam cobrindo o alguidar com o sangue dos porcos. Esgueirei-me por ali avistando o celeiro mais atrás, e dei de frente com a carcaça sem pele de um porco com os olhos já arrancados, pendurado no alto de uma lança com o sangue gotejando pelo focinho. 

Notei que atrás da pocilga a muralha era mais baixa, tanto que era possível debruçar-se nela. Além das escarpas dos muros, o terreno que degradava vertiginosamente para baixo estava coberto de um barro que a bruma não conseguia esconder de todo. Dei-me conta de que se tratava do depósito de estrume, que era jogado daquele lugar e descia até a curva de onde se ramificava o caminho no qual os pedintes mais jovens se aventuravam. Digo estrume porque se tratava de um grande monte de matéria malcheirosa, cujo odor chegava ao parapeito no qual me debruçara; evidentemente os camponeses vinham retira-lo por baixo para usa-lo nos campos. Mas, aos dejetos, dos animais e dos homens, misturavam-se outros refugos sólidos, todo o refluir de matérias mortas que a abadia expelia do próprio corpo, para manter-se límpida e pura em sua relação com o Santo e com o céu. 

Nos estábulos menores ao lado, os cavalariços estavam reconduzindo os animais ao cocho. Percorri o caminho ao longo  do qual se estendiam, do lado do muro, os vários estábulos, e a esquerda, por trás do coro, o dormitório dos próprios cavalariços. Lá onde o muro oriental se inclinava para o meridião, no ângulo da muralha, ficava o celeiro maior, onde havia me encontrado com Barton e meu pai anteriormente. Alguns ferreiros passavam por ali, guardando seus apetrechos e desativando os foles, para dirigirem-se ao ofício divino.  Movi-me com curiosidade para um dos lados do celeiro, quase isolado do resto da paisagem onde um jovem monge guardava as suas coisas. Em cima de sua mesa havia uma excelente coleção de pedras multicoloridas, de pequenas dimensões, porém lâminas mais amplas estavam encostadas à parede. Diante dele estava um relicário ainda não acabado, do qual existia apenas a carcaça de prata, e sobre a qual ele estava evidentemente engastando pedras e outras pedras, que com alguns instrumentos reduzira às dimensões de uma gema.  Notei que aquele era o mesmo jovem monge de ar virtuoso, Mazzini, que também encontrei no celeiro na tarde anterior.

Explicou-me que ali perto, na parte posterior da forja, soprava-se pedras também, enquanto na anterior, onde ficavam os ferreiros que ele agora apontava, eram fixados os vidros à solda de chumbo para fazer vidraças. Mas acrescentou que a grande obra de vidraria, que embelecia a igreja e o edifício já fora cumprida há tempos; e que agora limitava-se a trabalhos menores, ou reparação dos estragos do tempo, conforme lhe satisfizeram a curiosidade os que ali trabalhavam. 

“- Não temes caminhar e conversar com os daqui? E se te descobrem confabulando um ataque a Avignon?” – perguntei-lhe sussurrando para que ninguém nos ouvisse. 

“- Ora, mas estes também estão do nosso lado, caríssimo. Todos parecem aquecer em seu coração algum motivo para a queda papal, alguns destes ferreiros possuem parentes presos nas masmorras, outros tiveram a mãe e o pai mortos pela santa madre inquisição… esta abadia é um verdadeiro microcosmo. Impossível conhece-la de maneira integral, menos ainda os interesses desta verdadeira cidade que aqui vive, trabalha e morre. Difícil confiar em alguém, e além do mais nenhum dos guardas e dos sicários está ligado ao golpe, por isso devemos manter as atenções, mas difícil encontrar alguém dentre estes oprimidos que esteja disposto a nos entregar em troca de nada. Recebem mais se ficarem em silêncio.” – ele me respondeu calmamente enquanto analisava de perto uma pedra preciosa que estava ao lado do relicário, girando-a entre o indicador e o polegar destros bem a frente do olho. 

“- Veja esta pedra. A conhece? É um diamante africano, lapidado provavelmente em Paris, ou em algum outro lugar onde os mestres podem faze-lo com a mesma qualidade.” 

Enquanto eu olhava de lado a lado na entrada do celeiro, procurando algum vulto que pudesse denunciar-me a presença de meu pai, algum ruído que me confessasse sua presença, nada vi. Diante de meu silêncio nervoso, Mazzini continuou:  “- Com muito esforço estes ferreiros e mestres das pedras tentam revigorar a cada ano as belezas de Avignon porque não se consegue mais encontrar as cores de antigamente, especialmente o azul que podeis ainda admirar no coro interno da igreja principal, de tão pura qualidade, que com o sol a pino derrama no altar uma luz de paraíso. Os vitrais do lado esquerdo da nave, refeitos não faz muito tempo, não são da mesma qualidade, e isso se vê nos dias estivais. É inútil” – acrescentou: “- não temos mais a sabedoria dos antigos, acabou-se a época dos gigantes!” 

“- Mas por que me falas de vitrais? Estavas aqui ontem, quando meu pai me disse para espera-lo, pois tinha algo para me entregar. O viu?” – perguntei-lhe, enfim. 

“- Falo-vos, pequeno, destas obras preciosas que são os vitrais e suas pedras porque, sabes deste agora, eles vos serão vitais para os intentos de teu pai.”  Intriguei-me e pela primeira vez naquela tarde voltei a minha atenção totalmente para Mazzini, que continuava a girar o diamante entre os dedos, agora perto dos meus olhos. Percebendo minha confusão, ele disse: 

“- A preciosidade das pedras é símbolo de autoridade, mas também de fardo santo e natural. Não é ornamento, é um esplêndido florilégio da palavra divina da qual somos todos guardiões.”  Tocou, então, com os dedos a pedra, ou melhor, o triunfo de pedras variegadas que compunham o corpo do relicário:

“– Eis a esmeralda, que é espelho de complacência e nos recorda a sabedoria e a ternura de São Vergílio; eis a ametista, insígnia de caridade, símbolo da piedade de São Bartolomeu e são Sebastião; eis o rubi, que anuncia a fé de São Pedro, que é, como disse o Salvador, a pedra sobre a qual edificara sua igreja; a sardônia, signo de martírio que nos lembra são Bartolomeu; eis a safira, que é esperança e contemplação, pedra de Santo André e de São Paulo; e o topázio, sã doutrina, ciência e tolerância, virtudes próprias de São Tomás as quais se apegou e desenvolveu tão bem o padre franciscano Roger Bacon… como é esplêndida a linguagem das gemas que os lapidadores da tradição traduziram dos versos de Abraão e da descrição de Jerusalém celeste no livro do antigo testamento!” – e Mazzini continuou, imerso que estava naquela sua visão mística:   

"-  Por outro lado as muralhas de Avignon escondem recônditos das mais preciosas pedras, caríssimo, entretecidas das mesmas jóias que ornavam o peitoral do irmão de Moisés, menos o carbúnculo, a ágata e o ônix que, citados no Êxodo, são substituídos no Livro dos Números pelo calcedônio, pela sardônia, pelo crisópraso e pelo jacinto.”

Tentei abrir a boca, mas Mazzini me silenciou erguendo a mão e continuou o próprio discurso: “– Lembro-me de uma oração em que cada pedra era descrita e rimada em honra à Virgem. Nela falava-se de seu anel de noivado como de um poema simbólico resplandecente de verdades superiores manifestadas na linguagem lapidar das pedras que o embelezavam. Calcedônio para a fé, rubi para a caridade, esmeralda para a pureza, sardônia para a placidez da vida virginal, rubi para o coração sangrante no calvário, crisólito cuja cintilação multiforme lembra a maravilhosa variedade dos milagres de Maria, ametista, com sua mistura de azul e rosa para o amor divino…” 

“- Mas por que me falas destes significados? Onde está meu pai” – disse-lhe, exasperado.  O monge fez um silêncio duro, retirou de dentro do relicário das pedras um papiro enrolado de maneira finíssima. 

“- Teu pai já esteve aqui. Te atrasaste, pequeno.” 

“- Vim pela esplanada, por trás de onde os sicários guardam suas vigílias.” 

“- Acalma-te. Ele te deixou este mapa. É um mapa conseguido pelos contatos de Barton.”  Abri com cuidado o vellum. Não havia nada, a não ser um forte cheiro acre e pungente.  “- A linguagem das pedras servirá para que consigas decifrar a linguagem deste mapa. Está protegido com suco de limão, em finas camadas. Os desenhos, assim como as escrituras e iluminuras ficam ocultas até que se espalhe sobre sua superfície o pó de algumas pedras, ou que se olhe para eles através de finas lâminas de rubi.” 

“- O que queres me dizer?” 

“- Que para enxergares o mapa, olha através das pedras. O rubi, por exemplo, deve ser fino, para que vejas através dele. As qualidades prismáticas de algumas pedras permitem enxergar o que está oculto pelo suco de limão em manuscritos antigos.” 

“- Usar as pedras mais finas como lupas…” – disse-lhe. 

“- Sim, como o fez Roger Bacon em seus tratados oculares. Toma esta lâmina de rubi e esta de safira. Estas pedras te serão úteis para ver o mapa. Não o vi ainda, mas teu pai disse-me que o levará até as masmorras através dos caminhos do ducto de ar, que disseste ter encontrado do outro lado das muralhas, junto com os lixos.”  Coloquei rapidamente o rubi e safira dentro de minha túnica e o mapa na manga direita, abaixando o capuz sobre a cabeça.  “- Obrigado.” – disse a Mazzini. Ele olhou ao redor. Ninguém. Continuou a apreciar o diamante do relicário, e me respondeu com o ar absorto:

 “- Agora volta para o edifício principal que quero terminar de ver estas maravilhas.”

Rodrigo Monzani

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