Simplicíssimo

Aurora (XLV)

XLV

  

– Não espereis, de qualquer parte, alguma fraqueza. Caminhas para salvar a ti mesmo, mas isto não te basta!

O corpo da abadia pareceu-me, mais uma vez, enregelado. Continuei com o mapa e as pedras de Mazzini sob minha túnica quando vi o grupo franciscano rumando para o salão de discussões. Percebi que Rinaldo fez um esforço para caminhar enquanto mal conseguia se manter de pé. Seu olhar tinha algo de muito diferente, caminhava para o salão olhando fixamente para o jardim, sem expressão, e depois abriu um sorriso olhando para o nada, como se estivesse vendo velhos amigos.

Aproximei-me.

 “- Ita, pater optime.” – ele me disse, sorriso absorto e olhos fixos enquanto ia para sua cadeira ao lado dos outros noviços.

Recomeçaram, então, as discussões do Concílio. O abade falava e obviamente nenhum homem terrestre nos pareceu mais excelente do que ele naquele momento. Falava em latim e a cada profunda inflexão de seu discurso adoçava a expressão dos olhos e do coração do auditório, pessoas para as quais poucas palavras não bastavam. Eu continuava a fitar Rinaldo duas fileiras de cadeiras abaixo de mim, tentando recuperar meu sangue frio. Mal sabia o que tinha lhe acontecido durante minha ausência.

 

Neste ínterim, o abade examinava os confrades de todas as partes do mundo em teologia, em sapiência provençal e ecumênica; e todos davam graças a Deus de consciência tranqüila e ficavam impressionados com a extensão de conhecimento do abade. O espanto aumentou quando ele interrogou especialmente sobre as heresias que proliferavam campos afora, e sobre as sagradas escrituras; mas para minha total surpresa, percebi que ele, verdadeiramente um bom discursante, falava para padres que pareciam quase não conhecer os martírios e ensinamentos de São Gerômino, São Boaventura e São Basílio, citados desde sempre como grandes homens no combate aos hereges.

 

“- Com efeito” – dizia “- aí está a tendência fatal ao protestantismo: um superficial e obtuso conhecimento das Santas Escrituras.” (e neste ponto, sem ter sido interrogado, Rinaldo se levantou e, sem ao menos pedir a palavra, despejou…)

 

“- Senhor abade, a que leva este raciocínio profundo, infinito e agudo sobre as sagradas escrituras senão ao exame mais pessoal de um religioso, ao questionamento de suas próprias condutas mundanas, que por mais bem intencionadas que possam ser são, verdadeiramente, rebeldes e vadias, e que é a fonte na qual se amarra a base do próprio protestantismo?”

 

O abade silenciou. O salão silenciou, mas o silêncio era eloqüente. Rinaldo, então, continuou:

 

“- E, ao lado desta ciência imprudente, não há nada sobre os santos padres que possa compensar essa tendência!”

 

O espanto de todos somente foi maior quando Rinaldo não conheceu limites para questionar a autoridade do papa sobre os acontecimentos de Avignon, sobre a influência de um imperador corrupto que, dentro de pouco, se encontraria ali no meio deles e qual seria a decepção dos antigos e únicos verdadeiros homens santos de outrora e da antiga igreja frente aos despautérios católicos que se via por toda a parte; e falava estas coisas recitando versos de alguns poetas mortos na fogueira e outros que bastavam dizer-lhes o sobrenome para causar calafrios salão afora.

 

Rinaldo sentia-se o senhor de si, interrogou o abade sobre o quanto o mesmo realmente acreditava na doutrina que pregava, respondia de memória aos murmúrios reprovadores que advinham de todos os lados; era como se as sensações violentíssimas que o experimentavam (sim, não era ele, de forma alguma, que as experimentava, mas elas que o faziam nele!) tivessem lhe esgotado toda a sensatez.

 

Ainda assim, a severidade do abade em relação a Rinaldo naquele momento me pareceu apenas afetada, sem os princípios da austera gravidade que impunha aos seus confrades estudantes de teologia; e pensei que naquele momento e pela sinceridade de suas palavras, o próprio Deus poderia ter beijado Rinaldo pela lógica de seu coração discursante porque através de sua tal perspicuidade via-se clareza, alegria, libertação, verdade, nitidez, precisão, ideologia e sensibilidade nas suas colocações.

 

“- Eis aí o efeito das pompas vãs do mundo; estamos acostumados a rostos noviços aparentemente risonhos, mas são verdadeiros teatros da mentira. Mas a verdade é austera! Será que terei que vigiar para que minha consciência se mantenha tranqüila contra este tipo de fraqueza entre os jovens monges?” – enfim proclamou o abade, e fez um sinal com as mãos para que alguns sicários levassem Rinaldo. A este ponto, o Carmelita se aproximara e dissera-me que provavelmente o levariam à sala do abade, e depois, talvez para a sala das penitências.

 

“- E se o levam para as masmorras?” – perguntei, vendo a multidão de eclesiásticos acorrendo para o lado de fora em direção aos quartos.

 

“- Duvido” – respondera-me o Carmelita, “– Rinaldo trouxe muita atenção para si. Não tomariam tal decisão frente a tantos olhos… Percebestes como ele estava alterado?”

 

“- Sim, e muito! Não poderia estar em seu estado normal da alma para dizer tais despautérios ao abade frente a todo o Concílio. E percebi que manquitolava também.”

 

“- Não pude falar com Rinaldo” – disse o Carmelita, “- mas presumo que as suspeitas sobre o roubo da chave da sala das ervas tenham recaído sobre ele. Provavelmente o procuraram a noite e fizeram-no falar o que sabia. Na mesma manhã o próprio abade nos interrogara em sua mesa sobre o roubo, lembras? Rinaldo certamente despejou seu discurso emocionado e multifacetado sobre suas próprias virtudes; até que lhe ministraram ungüentos medicinais para que, num outro estado de espírito, pudesse revelar a verdade. Ervas, das mesmas que preparam para os enclausurados nas masmorras…”

 

“- E Rinaldo ainda se encontrava sobre os efeitos de tais ervas quando encontrou coragem…”

 

“- Insensatez.” – corrigiu-me o Carmelita.

 

“- Sim, insensatez, para discursar desta maneira frente a todos. Estava certamente sob efeitos alucinógenos.”

 

Saímos do salão até uma escada estreita que penetrava num funil baixo e mal iluminado até os dormitórios. Livre de qualquer atenção, saquei o mapa e as pedras; e os mostrei ao Carmelita, dizendo que Mazzini os havia me entregado, e falado sobre a importância da linguagem das pedras para decifrar os caminhos para as masmorras.

 

“- Mas é este então um dos projetos de Avignon, feito pelos primeiros engenheiros franceses. Como teu pai o conseguiu e por que as pedras?”

 

“- Lembras que naquela tarde no celeiro havia outros dois homens? Um deles era padre Barton, mestre de minhas aulas no navio, como te contei. O mapa veio de seus contatos. As pedras nos servirão para ver além da camada que protege o projeto, como as lupas. Por isso não vês nada a olho nu, o projeto está protegido com suco de limão.”

 

“- Foi isto que Mazzini te disse? Confias nele?” – o Carmelita dizia aquelas coisas olhando ao redor, um ar de preocupação evidente nos olhos e não me surpreenderia se desconfiasse até mesmo de mim, tamanhas as peripécias de seu imaginário.

 

“- Não importa. Estamos sós até que o golpe se consolide e qualquer ajuda será bem vinda.”

 

“- Sim, deciframos o mapa, e depois?”

 

“- Ora, temos dois trunfos na manga, não? Tu pegaste a chave da sala das ervas, e eu tenho o mapa dos ductos de ar. Sabemos que os dois caminhos levam até as masmorras. Não poderemos contar mais com Rinaldo, que certamente não mais circulará livre como antes após o que disse hoje. O certo é nos dividimos, eu e você, cada um recruta uns dois, três noviços em nossas reuniões na fenda e ensaiamos nossa ação: você, com a chave, à procura da passagem que utiliza o herborista para chegar aos cativos, e eu escalando as muralhas por fora, procurando alguma brecha que chegue até Alermano pelos ductos de ar e com este mapa nas mãos.”

 

“- Mas teremos tempo? Não ouviste o que o abade disse antes que Rinaldo tomasse a palavra e as atenções? O imperador chega amanhã, com o mau tempo talvez aponte nos portões somente à tarde.”

 

“- Agiremos rápido.”

 

“- Sim, mas a presença imperial significa o dobro de guardas e sicários guardando vigílias por toda a abadia.”

 

“- Carmelita, fala com os noviços de tua confiança e os convoca para a fenda. Falarei com os meus.”

 

“- Certo, mas e a chave? Não poderemos agir enquanto não soubermos o significado de sua inscrição” – disse ele com um fio de voz sussurrante.

 

“- Pentateuco…” – pensei.

 

“- Carmelita, traz a chave também para a fenda.” – disse-lhe, lembrando de minhas aulas sobre a sagrada escritura, como cabe a um monge conhecê-la, no navio com Barton. “- Tive uma idéia.”

Rodrigo Monzani

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