XXI
– Segues o caminho que já conheces
Historicamente, as planícies pelas quais passávamos possuíam maiores vínculos tradicionais com Veneza do que especificamente com as belas e misteriosas terras do mausoléu da família Locci. Contudo, toda aquela região fora criada de forma arbitrária, províncias que espelhavam os restos de penínsulas reivindicadas por diversos países como partes de acordos de antigas guerras. Nestas feitas, algumas localidades específicas, de rigorosas cartografias e incertas localizações, assimilaram rituais tradicionais das mais diversas culturas, dando àquelas planícies, percebo hoje, uma dimensão psicológica quimérica e complexa.
Encontramos com alguns ermitões ferreiros e artesãos, cada qual especializado com sua cultura, algumas nascidas dentro da própria Itália, mas a maioria vinda de tribos celtas, persas, francesas e de outras etnias que séculos antes ali travaram suas batalhas imperiais. No Vale do Veneto, encontramos oficinas que anos mais tarde, proliferadas, constituíram a principal artéria econômica para o porto Veneziano. Os descendentes celtas enviavam carnes em conserva, couro, tecidos para serem consumidos em suas terras de origem e recebiam em troca, meses mais tarde, objetos de cerâmica gregos, vasilhas de bronze etruscas e o artigo mais apreciado: o vinho. Anos mais tarde, italianos, franceses e germânicos reconheceriam que o primeiro vinho bebido em suas terras viera da Grécia e, embebido em suas ânforas adornadas com cenas de rituais dionisíacos, também aportavam empréstimos de culturas distantes, gerando vagas de costumes de caráter absolutamente próprios e supertições religiosas que permeavam o cotidiano daqueles que encontramos durante nosso retorno a Pádua: os pântanos eram malditos, locais agourentos que deveriam ser evitados e mantidos no abandono, o fogo era sagrado, os mais novos ramos dos mais antigos carvalhos possuíam propriedades medicinais, usados para aumentar a fertilidade das mulheres e para induzir a presságios que aplacavam malefícios.
Tal cenário histórico-cultural gerara durante os anos as paisagens e costumes que contemplávamos durante nossa insólita empresa de volta a nossas terras; e são de resumida, mas também de vital importância para que possamos entender os miríficos enredos nos quais nos inseríamos minha companheira e eu e no que estávamos prestes a presenciar antes que chegássemos de volta a Pádua. Encontramos povoados em pleno ritual de apreciação de seus mitos, esculturas espelhando distintos padrões de beleza, realizadas sobre as arcadas de cavernas rústicas nos sopés de um penhasco que serviam de abrigo para ovelhas, carneiros e para armazenar os barriletes de vinhos e seus cavalos. A bebedeira, contudo, resultara no súbito aflorescimento da imaginação local, fato que provavelmente servira de explicação para a ignota veneração de alguns povoados pela cabeça humana. De uma maneira que confundiu novos e antigos eruditos, a cabeça passou a encarnar a essência de algumas culturas e religiões, passara a representar a estetização da própria alma do Homem, e embora muitos guerreiros locais tivessem a oportunidade de observar que a realidade era por demais distinta, passaram a acreditar que cabeças decepadas de inimigos poderiam falar, mover-se e afastar o mal, encarapitadas em pontas de lanças e penduradas nas entradas de suas cabanas. Tais costumes, a princípio, me pareceram revoltantes, e minha curandeira dissera-me que os crânios mais valiosos eram embalsamados em óleos de cedros e decorados com ouro para serem utilizados como copos; alguns estranhos cavaleiros que vimos vagar pelas florestas costumavam prender uma cabeça na sela de seus cavalos ou no próprio pescoço para proteger a si mesmos e aterrorizar seus adversários. E foi com um destes que nos encontramos, numa tarde escura, no silêncio daqueles campos. O homem carregava, num colar de cordas, uma cabeça sem vestígios de cabelos e já semidecomposta, dando visão, à área dos olhos, a sua caveira trincada certamente pelo golpe fatal.
Oferecemos-lhe o ópio que nos restara de nosso último encontro com traficantes e tal ato fora entendido como forma de amizade. Nesta feita, fomos conduzidos a sua aldeia, fato que uma forte fascinação me causou: a aparência dos guerreiros era atemorizante. A maioria usava calças comuns e túnicas ou casacos de couro e seus aspectos amedrontadores eram causados pelos longos cabelos endurecidos com cal. Usavam colares apertados conhecidos como torque e se algum deles atingisse a obesidade a ponto de estourar seu colar, eram lhe impostas graves punições quando não a própria morte.
Havia dezenas de deuses e demônios esculpidos na pedra das casas, cada qual com sua especialidade; uns protegiam os animais com chifre, outros os ferreiros e ainda outros, os oradores. Havia uma estátua de proporções gigantescas, esculpida ao centro da aldeia, em bronze, de um velho ancião com correntes de elos dourados que saíam de sua boca e que se ligavam à ponta dos telhados das casas, pequenas e construídas ao redor em forma de circulo. À frente destas construções, haviam montes de palhas amarrados com cordas que sustinham receptáculos de barro com ossos de animais e homens que eram oferecidos aos deuses, resultado de sacrifícios humanos, queimados, afogados e enforcados, presumivelmente criminosos e prisioneiros de guerra; e os alimentos eram armazenados em poços junto à caveiras humanas com a finalidade de manter as provisões a salvo do apodrecimento e do ataque dos vermes.
Em outros povoados, vimos esculturas sem cabeça e sem os membros superiores, bustos de mulheres com língua de serpentes, tribos que desenhavam animais terrestres e marinos em vasos de cerâmica, mas estes animais pareciam provindos de um imaginário ateu e dissimulado, alguns tecidos em relevo nas próprias paredes: lobos que tocavam arpas, cavalos alados, guerreiros que cavalgavam leões de seis patas, peixes com chifres cervinos, esqueletos humanos esquálidos e barbados com expressão ridente, mulheres de duas cabeças e três seios e sobre uma baleia que pairava acima das nuvens, estavam o estadista Sólon, o sátiro Sócrates, o ateniense Péricles, o dramaturgo Ésquilo, o estrategista Temístoles, o pioneiro da ciência médica Hipócrates e o historiador Tucídides, além de alguns pensadores, num dialogar espantado semelhante ao dos apóstolos de Cristo na última ceia, como na Bíblia descrito.
Hoje presumo que todas aquelas imagens colhidas em minha juventude hoje constituam uma paisagem quase imemorial, pois tratam-se de um reconhecimento parcialmente ilusório, uma sensação verídica mesclada com sentimentos inspirados na desilusão, no ópio e outras drogas e numa viagem que aqui não reproduzo servilmente, não por força da vontade, mas pela influência de minha consciência perturbada e pelo esquecimento, e embora aquelas culturas tivessem um desenvolvimento local e temporal semelhante, não possuíam continuidade ou caráter de complementaridade. Verdadeiramente, algumas degladiavam insistentemente entre si, e estes combates, aliados àqueles proporcionados pelas delegações imperiais e inquisitivas, resultariam no desaparecimento de muitas aldeias, como constataríamos ao chegar a Pádua. As culturas que vimos, por fim, seria-me motivo de um de meus maiores medos de outrora e que ainda hoje carrego; e parece-me agora, ao relembrá-lo, crescer de uma maneira desvairada.
Chegamos cerca de vinte dias após o término de nossas infrutíferas buscas em Trieste, numa manhã cinzenta e estranhamente fria, silenciosa, e tudo estava totalmente destruído, e até mesmo nos riachos mais pro´ximos parecia correr apenas sangue.
Seria-me um fardo impossível de carregar tentar, através destas linhas, descrever a sensação de horror impreciso e brutal que me percorreu o espírito àquela visão. Cercas reviradas ao acaso, veios de fumaça que brotavam de fogueiras apagadas pelo sereno da manhã, terra repletas de pegadas descontínuas de cavalos, de homens e do demônio.
Da oficina do ferreiro restara os alicerces da construção, os esqueletos de seus instrumentos de trabalho, sua velha caldeira revirada dentro de um monte de mato que avançava porta adentro, o telhado ressecado, enegrecido e mal colocado como que atingido por cima e por baixo, e depois corrompido pelo incêndio. Todas as casas foram depredadas e ao encontrar novamente a casa de meu pai, sofri um desmaio que me levou a cair de meu cavalo, acordando após os tratamentos sempre providenciais de minha curandeira.
Nossa casa não tivera um destino diferente das outras com nossos poucos móveis saqueados, os que ali ficaram, queimados e revirados, as janelas, quebradas por pedras que jaziam no centro do local que antes era a cozinha, identificada apenas pelos nichos sujos onde costumávamos guardar os alimentos no inverno. Acordei ali, vendo a expressão de desamparo de minha curandeira, o galgo farejando ao redor entre os entulhos, nossos cavalos amarrados a nossa entrada sem portas. Aquela foi a única vez que me lembro ter chorado, talvez a única em toda minha vida e certamente a lembrança que mais agora me castiga. Não encontramos ninguém de meus antigos companheiros, tudo estava inapelavelmente abandonado e destruído e nem mesmo os corpos dos possíveis mortos encontramos.
Continuei a contemplar a cena – muros atacados, janelas sem vidro, casas sem portas, animais mortos apodrecendo – com uma completa depressão da alma e após o que me pareceu muito tempo, consegui reunir algumas forças de meu temperamento e levantei-me dentre aquelas sombrias visões que se amontoavam sobre mim, girando num fantasmagórico desfile de destroços atrozes e vazios; e não posso relacionar o que sobre mim se edificou naquele momento a qualquer sensação terrena, mas era algo que, a sua terrível contemplação, me enervava e que estranhamente, aos poucos, me foi obrigando a recompor as inspirações, ardentes e desejosas, ainda mais, de reencontrar Alermano e meu pai.
Percorri nossos destroços revirando cada tábua, cada ruína das ruínas e por fim, extasiado, encontrei num pedaço de pergaminho, escrito recentemente e ali deixado, pendurado no que restara de um lume aninhado atrás de um espelho, a mensagem que, instantaneamente me refez as forças e me trouxe novo alento. Era uma mensagem escrita por meu pai.
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