Simplicíssimo

Aurora (XXII)

XXII

– Leias com mãos trêmulas, pobre despedaçado, e caminhes seguindo a rota dos cemitérios.

A mensagem era na verdade uma longa carta escrita com letras tremidas e vermelhas sobre frente e verso do pergaminho que, a julgar pelo aroma, estava protegido por uma fina camada de suco de limão; e devido a sua extensão, não poderia descrevê-la integralmente agora, como farei, se ainda nestes dias não a guardasse. A letra, embora distorcida, era de meu pai e a reconheci assim que sobre elas voltei minha atenção, a despeito das gotas vermelhas que permeavam a folha do pergaminho e que dificultavam sua leitura. Àquela altura de minha vida, meus únicos exercícios de leitura haviam sido ministrados pelo meu próprio pai que, para suplementar a necessidade da escrita, nos fez, Alermano e eu, aprender a ler as lápides que ele mesmo esculpia, motivo pelo qual necessitávamos primeiramente tocar os sulcos das letras nas pedras, seus relevos, para desta forma decifrá-las, assim como fazem os cegos. E foi desta forma, com os olhos e com os dedos sobre os pequenos relevos daquelas finas letras, que decifrei a carta:

“Caríssimo, escrevo esta carta com sangue, pois me falta tinta ou qualquer outro meio para expressar-me. Ademais, o sangue deixará um bom relevo nas letras, o que facilitará tua leitura. Sei que és forte e que chegará a encontrar estas minhas palavras, apenas espero que as encontre antes de sua própria breve destruição pelo tempo.

Certamente, se aqui estás, já deves saber que esta tua companheira é mulher de confiança, irmã da verdadeira mãe de Alermano, a quem buscamos infelizmente ainda no escuro. Estava certo que ela o curaria de teus ferimentos, mas não pude esperá-lo para retornar até nossa província em busca de nosso desaparecido, e sei que compreendes melhor do que eu mesmo a situação na qual nos encontramos, afinal, por quais motivos Alermano foi levado e por que ainda nos procuram?

Voltei a salvo das delegações imperiais por meio de uma peregrinação de falsos eruditos a quem os cavaleiros fazem vistas grossas e agora, de todo modo, me encontro ainda com a saúde da alma e do corpo. Não te preocupes comigo, filho.

Alermano certamente está escondido nas masmorras inquisitivas da sede papal em Avignon e não posso esperar-te, pois o tempo nas masmorras resiste a qualquer sabedoria e discernimento que Alermano ainda possa ter. Estou a caminho dessas terras e planejo poder encontrar-te em breve, mas não posso deixar-te um mapa com meu sangue. Faça o seguinte, caro filho: Siga a rota dos cemitérios santos até Avignon, passarás, nesta ordem, por Verona e Mântua e a esta altura saberás se seguirei até Piacenza ou Milão. Procure em cada cemitério destas cidades as lápides que fazíamos em nossa casa. Deixarei pequenas mensagens esculpidas atrás de cada lápide indicando minha localização última e os caminhos que seguirei; e estes mesmos vocês também devem seguir. Provavelmente passarei por Alba ou Turim antes de romper a fronteira francesa. Não sei exatamente quais caminhos tomar a se julgar pelas variáveis rotas imperiais, desta forma, manterei-te informado durante minha própria viagem sobre meu trajeto. Não te esqueças, procure apenas as lápides que nós mesmos juntos construímos, sei que te lembrarás. Espero que tu e tua curandeira estejam bem.

Força, amigo e filho meu. Estou certo, ainda que por sombrios caminhos, que nos encontraremos em breve.”

Ao terminar meu singular método de leitura, tateando o pergaminho, uma súbita alegria atingiu-me o espírito como uma chuva gélida de inverno, refrescante; e percorria, saltitava entre os escombros dos destroços de minha antiga casa com a carta nas mãos, e gritava: “- Pai meu, preparas a mesa para mim e vamos comer diante de nossos inimigos!”, abraçando minha curandeira pela certeza, enfim, de que meu pai estava bem. Fomos, imersos no cenário de toda nossa destruição e com aquela nova imagem de alento, ao encontro de nossos cavalos e partimos na direção sudoeste, seguindo as indicações da carta e os conhecimentos geográficos de minha curandeira, até Verona.

“- Tens certeza que te lembrarás das lápides que fazias com teu pai, caríssimo?” – ela me perguntou enquanto esboçava nossas futuras trajetórias num pequeno mapa sobre outro alvo pergaminho sem iluminuras que trazia em sua bolsa.

“- Lembrarei-me de cada uma das lápides assim que colocar meus olhos nelas. Estou certo! Apenas temos que encontrar a rota dos cemitérios, mas quando chegarmos em cada um deles, posso indicar-te quais lápides são trabalho de meu pai.” – respondi-lhe com ânimo renovado.

“- Confio em tua memória, mas te esqueces que nos depararemos com centenas de túmulos, lápides e mausoléus… entraremos em obscuras catacumbas e criptas e devemos manter-nos desapercebidos dos olhos alheios. Não te enganes, será uma missão deveras difícil que, mais que uma boa memória, nos exigirá sabedoria e paciência.” – ela disse-me olhando para seu pergaminho, rabiscando os nomes das cidades pelas quais passaríamos em breve em torno do desenho do rio Pó.

“- Sabedoria… que venha toda a corte de demônios do mundo e do inferno, que venham os sátiros de ventres inchados e luxurientos, que nos apareceram os fantasmas alados de mãos ossudas e frias, que nos ataquem os imundos sapos subterrâneos de olhos translúcidos e as serpentes venenosas que se escondem às nascentes de rios de sangue, que toda espécie de fêmeas descarnadas finquem em nós seus podres dentes afiados… seguiremos a rota de meu pai e o encontraremos!”

“- Estás a perder a si mesmo…” – ela constatou enquanto eu ainda gesticulava no ar o entusiasmo de minhas palavras. ” – É preciso a calma. Sei que te alegras finalmente com esta notícia de teu pai, mas ainda nada conseguimos. Apenas teremos êxito se racionarmos com lucidez.” – concluiu.

Meu entusiasmo, então, deu lugar a uma tênue sensação de ausência moral, e contive meus discursos alegóricos, e comentei, impudico:

“- E como conseguiremos ainda raciocinar com lucidez em meio a tantas desgraças?” – lembro-me que ela cessou seus desenhos cartográficos quando me ouvir dizer isso, me olhava com atenção e abriu-me um sorriso quente, mostrando-me seu mapa que acabara de esboçar:

“- Em breve, após alguns anos de estudo, não mais precisarás que as letras apresentem-se a ti entre sulcos na pedra ou relevos no papel para compreendê-las. Vês? São estes os caminhos indicados por teu pai na carta, seguiremos, a princípio, a rota do rio Pó. Toque o pergaminho e me digas se entendes.” – ela disse, referindo-se a meu estranho método de leitura.

“- Sei que não leio bem, mas ainda que tenha dificuldades, percebo que tanto meu pai quanto tu são sábios na arte da escrita.” – lhe respondi. Cavalgávamos lentamente, o vento frio anunciava uma noite intensa; e ao ouvir meu comentário sobre a sabedoria, ela reconheceu sua ínfima capacidade naquela arte que eu acabara de exaltar:

“- Não somente a sabedoria se encerra na escrita, caríssimo; e ainda somos prosaicos quanto a isso. Não posso deixar de relacionar a sabedoria dos homens, assim como esta que atribui a mim e a teu pai a nada mais que, senão, nossa desventura.” – percebendo meu interesse, ela continuou:

“- Conheces a escrita bíblica, caríssimo? Aprendeste algo como o monge de nossa última peregrinação?” – diante do meu silêncio, ela disse:

“- Vou contar-te o que sei: ao capítulo dois do Livro de Jó, versículo sete, Satã fere Jó com graves feridas profundas, desde a planta dos pés até a cabeça. Jó procura um pedaço de telha para coçar-se, sentado em meio a cinzas e destroços; e sua mulher lhe diz, ao versículo nove: ‘- Você ainda continua em sua integridade? Amaldiçoe a Deus e morra de uma vez!’ Jó, a esta altura de sua sina, havia perdido, como teu pai, os filhos, sua casa desabara e encontrava-se cada vez mais só. E então, Jó responde à esposa: ‘- Está falando como louca! Se aceitamos de Deus os bens, não devemos também aceitar os males?'”

“- Mas o queres dizer-me?” – perguntei-lhe enquanto o frio noturno aumentava.

“- Teu pai soube aceitar seus males, e malgrado o fato, como o sei, de não ser um homem religioso, sua sabedoria parece constituir-se numa verdadeira perfeição capaz de absorver e destruir qualquer aporte que a ela agora se ofereça. Até mesmo tu, em tua tenaz juventude, pode perceber que nele há alguma sabedoria.” – e ela concluiu:

“- Aos jovens inocentes como és, a sabedoria personifica uma clara certeza, e por isso a percebeste: impossível tê-la sem sofrer. Não é possível medi-la num espírito sem demônios, pois somente quando confrontado com sua verdadeira desgraça, um homem pode mostrar-se sábio; e se pudessem pesar aflição de teu pai agora, colocar na balança sua desgraça, digo-te que seriam mais pesadas que as águas do mar. Assim, não te percas em meio às ilusões do entusiasmo.”

“- Então posso me considerar um sábio, pois sofro também…” – lhe falei, e não posso lembrar-me agora se em tom afirmativo ou de indagação. Ela pareceu fitar-me de uma maneira interessada, e seus olhos me serviram para aquecer o espírito, assim como suas palavras:

“- Todos almejamos encontrar a sabedoria, onde quer que seja encontrada. Contudo, não posso considerar-te um sábio à luz destes terríveis fatos, pois ainda carregas, assim como também eu, pregadas nas costas, atiradas pelo destino, flechas venenosas que embebedam e dissimulam o perfeito discernimento de nossos espíritos. Verdadeiramente, após uma vida inteira, descubro somente na alienação dos ignorantes alguma salvação, sem sabedoria.”

“- Então o saber significa sofrer?”

“- Para muitos profetas, a sabedoria apenas pode ser alcançada na solidão. As palavras divinas apenas são sábias porque oferecem algum consolo para o sofrimento. Eu diria que o sofrimento é a poesia da humanidade. Os livros bíblicos do antigo testamento que os santos eruditos denominam “Sapienciais”, como o livro de Jó, os Eclesiastes, os Provérbios, tratam de sofrimentos humanos. Verdadeiramente, cada indivíduo tem sua própria idéia do que seja a real sabedoria, mas me parece que todas estas estão de alguma forma ligada ao sofrimento.”

“- Então te parece óbvio que o sofrimento seja o início da sabedoria?”

“- O sofrimento preconiza uma severa tragédia acima da realidade esperada e, portanto, não óbvia. Uma tragédia dificilmente corresponderá a qualquer outra, desta forma, o sofrimento por ela causado é inteiramente diverso do óbvio. Porém, a tragédia pode ser superada de maneira jubilosa, com crescimento e aceitação da mortalidade, mas não necessariamente com sabedoria ou com o juízo que dela possamos fazer.”

“- Então ser sábio não é aceitar que somos mortais?” – perguntei.

“- Talvez seja compreender que é necessário aceitarmos nossos limites naturais. Nada de provérbios, aforismos e epigramas que representam a moral, o sentimento de amor e temor e que não configuram, necessariamente, qualquer tipo de saber.”

“- Devemos almejar, então, a tragédia para tornar-nos sábios?”

“- Prefiro a morte alienada dos ignorantes e espero que nossa empresa não encontre um trágico fim.”

Verdadeiramente, o fim de nossa busca ainda estava longe e nos seria muito distinto da obviedade; e até mesmo os túmulos que visitaríamos a procura das mensagens de meu pai (lápides de poetas, de eruditos, oradores, arcebispos, nobres e descendentes da nobreza) nos representariam mundos imersos dentro de outros mundos, prodigiosos, miríficos, surpreendentes e assustadores.

Rodrigo Monzani

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