XXIII
– É a primeira cidade que vês que não está à margem da destruição
À medida que contornávamos as colinas, rios, planícies e construções rústicas daqueles caminhos, dava-me conta que a neblina algumas vezes se confundia com vapores e nuvens de fumaça que deixavam entrever os fogos que as alimentavam; e aldeias transbordavam pelos campos, por toda parte havia viveiros de flores que me pareciam sorrir maliciosamente, cogumelos, animais assustados que corriam em pequenos bandos, caldeirões e fogueiras abandonadas, casas antigas e algumas outras mais novas, algumas de alvenaria, mas a maioria de madeira, muitas ainda não terminadas que escondiam moradores sombrios de olhos argutos e estremecidos como se jamais viu por aquelas trilhas.
Verona estava a alguns dias de viagem e minha ansiedade fazia o tempo dilatar-se, tornando enganosas a noção e circunstâncias funcionais de minha pequena ampulheta. Até a fria atmosfera que nos envolvia (que embora renitente e incomunicável nos pintava uma paisagem repleta de belezas naturais) me parecia opressora enquanto minha cabeça latejava com nossa lentidão, engolindo cada dose de ar com dificuldade, misturando-se com a mais variada gama de sensações melancólicas e aflitivas, distúrbio certamente causado pelo recente entusiasmo que sentira com as últimas notícias de nossa nova empresa. Fiz, então, o possível para resignar-me, mas não conseguia dormir nas intermináveis horas das noites, inquieto, impulsionado pelo desejo de afastar de mim qualquer aporte de uma torpe desatenção.
Contudo, dormia apreciando o jogo dos ventos e seus surdos ruídos vindos como de uma distância imensurável e que me diziam que o inverno chegara e que seria, a despeito de nosso quente outono, muito rigoroso.
Cavalgamos certamente muitos avançados em relação às rotas imperiais e permanecemos solitários por muito tempo, sempre atenciosos com nossas trajetórias, pegadas, trilhas que possivelmente poderíamos deixar ou restos de comida que poderiam, inocentes e perdidos, denunciar-nos a qualquer perseguidor mais atencioso. Além disso, minha curandeira supunha freqüentemente que nos encontrávamos às vizinhanças de algumas aldeias e me preparava o espírito para encontros que, cedo ou tarde, aconteceriam. Tal idéia me incutia um nervosismo interminável e enquanto me ocupava com essa possibilidade, e apesar de todo empenho em contrário, caí num sono profundo; ou antes, num estado do mais completo estupor físico e mental.
Da mais terrível natureza eram os meus sonhos: as iluminuras que vira nas obras e estátuas ao longo de toda aquela viagem ganhavam vida, personagens históricos retratados nos vasos e pintados à parede das construções que vimos, os passantes da peregrinação findada em Trieste, os mortos de meus próprios assassínios… tudo ganhava voz num lúdico cenário de horror que sobre mim se abatia; e via Alermano usando um de seus colares de dentes de raposa, sufocando até a morte imerso num rio de superfície congelada, desesperado sem poder quebrar o gelo enquanto os inquisitores gargalhavam às margens do rio circundado por serpentes de olhos luzidios do mais sinistro e feroz aspecto. Depois, desertos sem fim, nos quais eu, o galgo e minha curandeira cavalgávamos sem nunca chegar a seus fins, cinzentos e pedregosos, repletos de gigantescos troncos desfolhados e amplos pântanos (sim, assombrosos pântanos em meio aos desertos!) onde as negras águas pareciam observar-nos sombriamente de suas imobilidades.
De fato, sempre que acordava destes meus infortúnios e pesadelos, minha curandeira encontrava-se já desperta, fumando, cavalgando em seu silêncio resolutamente rumo a Verona, e eu, vencido que estava pelos meus sonhos convulsivos, adormecia sempre com relutância tendo em mente seus discursos sobre as Sagradas Escrituras e até mesmo seus personagens me apareciam, dançando ao nosso redor enquanto o resto da Terra celebrava algum ritual de Macabré.
Percebo que, por alguma espécie de silenciosa misericórdia, aqueles sonhos, assim como estes meus manuscritos, me proviam de algum tipo de salvação, pois as imagens, os cenários, como um todo, nos quais me inseria naquele momento, ainda que de maneira dissimulada e repletos de fantasiosas desventuras, ganhavam, por fim, um sentido para mim; e apenas se tornavam inteligíveis através daqueles sonhos, ou visões como queiram dizer, a ponto do mesmo sonho tomar corpo através de todos estes anos e se modificar, adequando-se à cada nova circunstância que a nós se apresentava, como se constituísse uma estranha representação artística de meus dias, que embora satírica, possuía forte e extravagante ligação com a verdade e, desta forma, torna-se também importante não somente para a construção de meus delírios enquanto adormecia, mas também para o meu alento enquanto acordado e desperto.
De outra forma, seria impossível aqui denunciar com lucidez e alguma sanidade, como faço agora, as imagens que, seja por influência do ópio de minha curandeira ou este que guardo ainda agora, vi e ainda claramente vejo: numa igreja iluminada por um clarão tênue e lívido, habitada por sussurros de monges invisíveis que cantarolavam regulados pela calma e por um difuso senso de justiça, eu me encontrava sentado a combater o frio numa bancada inóspita e cujo fim não enxergava, pois seu flanco parecia se dissolver na escuridão até onde meus olhos alcançavam. Aquele salmodiar envolvia-me como um narcótico e, neste estado, percebi que a igreja estava enfeitada para uma festa.
Levantando os olhos para o altar, vi meu pai sentado ao lado de Alermano e de um caldeirão fumegante, trazido por cozinheiros que arremessavam frangos vivos e carneiros pelos ares, capturados pelos monges que, agora visíveis, acomodavam-se abaixo de uma imagem de São Judas Tadeu. Todos bebiam da mesma garrafa de vinho que, passada de mão em mão, chegou até um padre que parecia coordenar aquela festiva celebração. A um aceno seu, entrou um cortejo de homens maltrapilhos e algemados, no meio dos quais estavam o monge e o vidreiro devotos de Vicenzo Locci. Seguindo estes homens, estavam mulheres vestidas, tão belas quanto a aurora, com estolas pespontadas de lírios e mantos brancos costelados de folhas púrpuras e violetas recamadas sobre vestes rosas, e percebi que aquelas mulheres eram, senão, Maria Madalena, Ruth, Santa Ana, Esther e Sara, e se apresentavam assim como suas próprias descrições nas Sagradas Escrituras. Todas elas se encaminhavam para o padre, e percebi que era ele não um só homem, mas, instantaneamente, possuía duas cabeças e era Aristóteles e Platão, e dava ordens que lia num livro em forma de peixe, em latim, agora aos brados, para que os maltrapilhos fossem apedrejados. A esta altura, os cozinheiros já haviam coberto a mesa do altar com riquíssimas especiarias árabes e de todo recanto culinário apreciável, e todos, exceto Alermano e meu pai, comiam e bebiam ostentando garfos tão grandes quanto verdadeiros cetros; até que Noé triunfantemente adentrou o enorme tímpano da igreja, remando ruidosamente a arca e oferecendo seus animais para o sacrifício, jogando uma âncora em formato de escorpião que atingiu o chão direto ao meu lado, enquanto Caim, Jó, Abel, Esaú, Adão, Jacó e Simeão se apressavam em abater os animais e jogá-los, todos juntos e aos pedaços, caldeirão adentro.
Levantei-me ao cair da âncora ao meu lado, levado pelas mãos por Salomé, que dançando a dança dos sete véus (e a cada véu que lhe caía, soava o coro dos monges em uníssono e afinado rejubilar), me encaminhou até o centro da nave principal da igreja. Aristóteles, que também era Platão, bradejou que danças eram obras do Maligno, e ordenou a morte de Salomé. João Batista a despiu, o rei Davi a amaldiçoou e um de seus guardas gravou-lhe na face, a ferro, signos zodiacais enquanto Noé, montando agora um leão, a arrastou pelos cabelos até os degraus do altar, Marcos a afogou na pia batismal até que, por fim e para término de seu infortúnio, cada um dos apóstolos lhe atirou uma flecha, sendo que a última, a de Judas, lhe atingiu direto na cabeça com tamanha força que a degolou, pendurando seu crânio acima de uma escultura de Jesus retratado ainda menino com Maria e o anjo Gabriel no Horto das Oliveiras. Porém, sua cabeça ainda falava e a despeito de seu sofrimento, cantava alegremente uma canção que exaltava as tradições da antiga Jerusalém enquanto o sangue lhe percorria os contornos do queixo.
Todos, então, silenciaram para ouvir a canção de Salomé, e aos poucos foram se retirando do salão da igreja, cabisbaixos, pois a canção era verídica e condenava os festejos realizados aos domingos, e como aquela era uma noite dominical, todos foram como que fulminados por suas consciências, jogando ao chão suas vestes pomposas e ajoelhando-se junto ao púlpito para implorar a salvação de suas faltas. Ao seu fim, mistério admirável, a cena não me incutia, ou incute hoje, qualquer apreensão, necessidade ou medo e sempre que me encaminho para chegar até Alermano e meu pai, ainda sentados à mesa do altar, os sinos da igreja ressoam e acordo de meu sonho como que desperto pelos versos de Salomé, que embora parte de meu imaginário, ressoam em meus ouvidos como que sussurrados com carinho e alegria.
Foi em meio a tais visões que cheguei até Verona, minha curandeira sorria em meio às névoas de seu fumo e o galgo farejava ao redor em estado de alerta, insone.
À contemplação de suas muralhas vertiginosamente íngremes e bem feitas, fincando tijolos, grades e portões na morosa atmosfera que nos circundava, tive a impressão de, pela primeira vez, ter diante de mim uma verdadeira cidade, tão impressionante quanto meus próprios sonhos e enquanto ainda descíamos a encosta da colina rumando para sua entrada, já nos perguntávamos de quem seria a lápide que deveríamos procurar para decifrar a mensagem deixada por meu pai.
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